A poucos minutos eu estava escrevendo sobre bloqueio criativo, gosto de acreditar que não tenho isso, prefiro pensar assim como Bukowski escreveu:
“se não sai de ti a explodir
apesar de tudo,
não o faças.
a menos que saia sem perguntar do teu
coração, da tua cabeça, da tua boca
das tuas entranhas,
não o faças.”
Dito isso, volto mais uma vez a esta resenha tantas vezes visitada desde 2018.
Quando fechei o livro “A Lavoura Arcaica” e percorri os olhos na última página, parece-me até o momento que nada dito sobre a obra fará jus a sua grandeza, parece-me um pouco pedante arriscar dizer qualquer coisa sobre ela a não ser que é primorosa e construída com maestria.
Então sem qualquer pretensão analítica, escrevo sobre minhas impressões de uma amante das palavras, a fim de poder dividir este estranho encantamento.
Este livro que para além de história e personagens é uma celebração da linguagem.
Nele as palavras e figuras compõe um concerto, daqueles que a melodia emociona e marcam a sua vida, onde se é transportado para um estado de espírito, ora embevecidos de leveza, ora de tensão, ora de profunda e obscura tristeza, ora de repulsa, ódio e confusão.
Não se engane com o tamanho físico desta pequena arma vermelha de Raduan, porque no fluxo da narrativa você irá perder-se em algo maior que as palavras.
Afinal, não é isso que define um clássico?
Quando você começa a ler o livro automaticamente você pensa que um autor tão brilhante deve ter uma vasta obra, mas depois ao ler sobre ele, seu posicionamento, desprendimento e reclusão voluntária, só faz com que respeitemos mais o autor.
Raduan Nassar nasceu em 1935 na cidade de Pindorama no interior de São Paulo, é um romancista e contista, que incomumente possui uma curta bibliografia – três livros -.
Apesar disso conseguiu construir um sólido universo literário que manifesta o seu contexto histórico, retrata a sociedade e suas relações, fala sobre o indivíduo, a família, a tradição cristã, o autoritarismo, os tabus e o patriarcado.
O poder de sua prosa foi premiado em 2016 com a mais alta honra literária em Língua Portuguesa: o ‘Prêmio Camões’, e recebeu também como autor revelação em 1976 o ‘Prêmio Jabuti’.
No livro o jovem e atormentado André, narrador em primeira pessoa, narra sua vida, suas memórias, dilemas, fraquezas e vícios.
Ele nos mostra sua fuga até o seu “resgate” por Pedro um de seus irmãos mais velhos.
Num diálogo com intensa pegada psicológica, tomamos conhecimento da sua conjuntura familiar e experimentamos várias sensações e sentimentos em relação ao que nos é contado.
Há vários tempos num mesmo tempo, avesso e real do que André sente em relação ao amor, a família e a sua incompreensão asfixiante de tudo que lhe é imposto, até o seu retorno para sua casa na fazenda como um filho pródigo que retorna ao seio da família, uma mãe submissa, irmãos numerosos e um pai autoritário.
No fluxo contínuo da consciência nem um pouco linear de André nos emaranhamos nas suas entranhas na busca de compreender a si e se desprender de um sistema opressor, na perspectiva dos seu medos e incertezas onde angustiados somos agora parte dessa fortíssima corrente psicológica, da intensidade da paixão incestuosa por Ana, e do seu movimento contínuo rumo a libertação e tragédia.
O lirismo de Raduan através de seu personagem faz com que a leitura se torne uma experimentação sensorial, onde sentimos não só o que os personagens falam, mas onde estão, se percebem e sentem.
“Lavoura Arcaica” não é ostensivo e cansativo, mas requer atenção aos seus tortuosos planos de narrativa sem pausa para que não deixemos escapar a beleza e elegância do panorama descritivo das relações humanas.
É uma leitura pesada e podemos dizer que não é fácil pelos seus cortes, tempos, metáforas que fluem na narrativa sucessivamente, mas também após respirar e imergir é o que nos encanta na arte deste semeador de palavras.
Se já não bastasse essa aventura da linguagem, “Lavoura Arcaica” foi deslumbrantemente adaptado para o cinema em 2001, como o primeiro longa metragem de Luiz Fernando de Carvalho.
O filme ganhou mais de cinquenta prêmios internacionais e entrou para a lista dos filmes brasileiros de todos os tempos.
O que mais me impressionou no longa foi a fidelidade ao texto original, a ousadia de respeitar a poesia só intensificou a beleza dos cortes, da fotografia, direção e música.
Destaque para atuação de Raul Cortez como pai, eu quando li o livro criei um personagem semelhante a ele na minha cabeça e Selton Mello (uma das vozes que mais gosto) que narra e vive as loucuras de André com impecável propriedade.
Poucos autores conseguem mexer com temáticas tão pesadas junto a uma descrição lírica e introspecta tão intensa, assim como Clarice Lispector faz, Raduan inova a língua portuguesa como um escultor que modela, estilhaça e cria algo novo e bonito, nos surpreendendo com o inesperado.
Ler “Lavoura Arcaica” é um desafio que requer coragem e entrega, aos que aceitarem o desafio o impacto será profundo e inegável, pois fala de temas tão universais; do oprimido que sai da opressão, da transgressão, da necessidade de vôos e liberdade, do conflito extremamente sensível de uma família em precário equilíbrio, do amor, da repulsa e paixão, da impregnação moral e da tradição.
Com a musicalidade do escrito e do não dito, é um romance, é uma tragédia que conversa com o contemporâneo através de tudo que nos revela e com poética nos faz questionar certezas tão invioláveis através da experimentação da palavra e de um final destruidor.
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Uma das melhores resenhas que eu já li na vida,me deu vontade de ler o livro e ver o filme.