RESENHA | Aline Bei – “O peso do pássaro Morto” (2018)

 

Por Laira Arvelos.

“Será que com o uso um dia a lágrima acaba?”

Uma das coisas que mais dói nessa vida é a perda, e este ano tem nos mostrado o tanto que temos a perder e perdemos.

O intuito é falar de um livro, mas antes queria compartilhar dois momentos, onde perdi um pouco e ganhei em outras medidas, porque a vida se mostra assim uma sucessão de perdas e ganhos muitas vezes não equilibrada.

O Peso do Pássaro morto - Aline Bei (2018, Editora Nós) gdb

Um dos autores que conheci através do meu breve trabalho na Biblioteca Pública foi Bartolomeu Campos de Queirós esse mineiro que hoje é passarinho no céu, escrevia sobre a infância, sentimentos e amizade de forma comovente e cativante.

Foi na leitura de seu livro poema “Até passarinho passa” que senti o vazio de muitas perdas dentro de mim, uma solidão e saudade intensa de tudo que passa.

A troca de sensibilidade e sofrimento com a dor de um menino que se envolve nas nossas dores onde nossas memórias profundas se fundem e redescobrimos e experimentamos muitos sentimentos; de companhia, cumplicidade e amor.

Cada palavra parece ser rigorosamente e ao mesmo tempo de forma leve escrita para nos transportar ao nosso tempo de inocência, silêncio e descobertas.

Cada palavra trata a vida, e a morte com uma harmonia e delicadeza que não passa; permanece.

Eu tenho certo amor por livros infantis, e afirmo que essas 32 páginas e belas ilustrações e este relacionamento silencioso entre menino e passarinho na varanda podem ensinar muita coisas para uma criança no seu início de vida, mas fala mais ainda a nós adultos com uma profundidade sensorial sobre o que é perder.

Dito isso, pássaros são animais/poesia que sempre me encheram os olhos e o coração, eu não me canso de sua beleza, de seu canto, de quando atrapalham meus áudios, quando gentilmente os encontro pelo caminho ou quando aparecem em poesias, como nas palavras de Manoel.

Assim como ele “eu sempre quis crescer passarinho”.

Acontece que criança pra mim é passarinho e um dia desses ao ler uma notícia no horário do almoço eu novamente perdi.

“Zohra; uma empregada doméstica de 08 anos teve sua vida ceifada por libertar dois papagaios”, essa manchete por si só já escancara tantas perdas, a perda que vem da pobreza, onde a família tem que dispor de crianças ao trabalho, a exploração, a perda da infância, da inocência, e do amor.

Como anda nosso mundo presente?

Onde quem sabe uma brincadeira, ou mesmo a angústia de uma menina ao ver pássaros em gaiolas ao soltar-lhes por amor pra dar-lhes liberdade a levou a ser espancada até a morte?

Cada dia, literatura, ficção, poesia e realidade se fundem e me fazem refletir e chorar pelas minhas perdas e pelas perdas de tantas pessoas que se perdem, que perdem os seus, que perdem a humanidade, sanidade o amor e a esperança.

Dias atrás, então, li um livro por indicação de uma amiga, já avisada do que poderia vir, acontece que o impacto depois da leitura foi maior do que o previsto, ainda hoje eu penso nas partes que em mim morreram, nas minhas perdas e nas perdas de muitas mulheres.

O peso do pássaro morto é um romance de estréia de Aline Bei, onde acompanhamos a vida de uma mulher dos 08 aos 52 anos.

Embora seja um romance e compreendemos a história como um, é escrito como poesia; da mais delicada poesia.

Aline Bei inicia o livro inspirada num fato de sua infância, que assim como o menino de Bartolomeu, teve contato com a perda muito cedo e continua a descrever a vida/poesia de sua personagem, com a dança das palavras como senti com Bartolomeu.

Aline passa por todos os atos da história de uma mulher, desde os mais tenros aos mais cruéis.

“O Peso do Pássaro Morto”, publicado pela editora Nós, foi vencedor do “Prêmio São Paulo de Literatura 2018” na categoria “Melhor Romance de Autor Estreante com Menos de 40 anos”.

Aline possui uma ligação bem íntima como os leitores através do contato direto das vendas e diálogo na internet.

Quando os autores assim como Aline não colocam nomes em um de seus personagens, intencionalmente ou não, há uma clara inserção e aproximação do leitor através da identificação de sentimentos, com o “vivi isso” “sei quem viveu” como se o que foi escrito pudesse ser escrito por qualquer um de nós.

Neste livro há ainda a impressão da falta de identidade da personagem que se perde dentro de si, e desmorona.

A frase que já nos apresenta ao livro reverbera a todo instante “quantas perdas cabem na vida de uma mulher?”, acompanhamos então a vida da personagem, suas descobertas, inquietações, questionamentos, cotidiano, e tragédias que persistem.

Apesar da singeleza de descrever até mesmo a desesperança, é violento e o impacto poético é devastador.

É possível parar de perder?

A narrativa em primeira pessoa acompanha a vida da personagem e a sequência de acontecimentos de sua vida, do que ela faz, do que fazem com ela, em muitos momentos como leitor nos sentimos presos por não poder impedir ou sanar tantas dúvidas ou angústias, ou até mesmo segurar nossas próprias lágrimas.

A honestidade como Aline fala desta mulher, sua infância, seus pais, suas dúvidas, vínculos, emoções, sexualidade e maternidade, abuso, culpa e violência são inquietantes.

Com uma escrita original, a linguagem muda na medida que os anos vão passando, mas não perde em nenhum momento sua prosa poética, na escrita caminhamos juntos onde passamos pela ingenuidade infantil, os freqüentes questionamentos e as não respostas, o contato com as palavras, a doçura da amizade, o contato com a morte, a omissão na educação, os primeiros contatos com sentimentos e a maldade, a descoberta da adolescência…

Se nas primeiras páginas de sua vida a garganta já ficou em nó, de repente sem aviso prévio Aline nos noucateia, com um enjôo no estômago, sentimos o golpe, eu não esperava, já tinha sofrido o bastante com Carla, Seu Luis, o deusinho penas e borboletas, mas estas coisas acontecem e a gente nunca espera.

Seguimos então devastadas na devastação da personagem.

Leitora que se identifica e mortificada resta nos continuar a leitura que insiste em ser bonita e poética até mesmo no que é feio e vil.

Vemos a vida passar e carregamos os nossos corpos até o fim do texto assim como a protagonista leva, mas agora não mais protagonista.

Enclausurada em si ela carrega a depressão, o julgamento da vida e da maternidade e a imponência.

Existindo com ela vemos o silenciamento feminino até que a narração em terceira pessoa nos mostre seu desaparecimento.

Um livro curto para nos tirar o eixo, onde confusos e arrebatados pensamos e imaginamos um mundo melhor, “Imaginar o mundo deve ser mais bonito mesmo”.

Na sucessão dos anos, experimentamos uma angustiante sensação de um ciclo contínuo de perdas, medo e morte, a efemeridade dos que morrem do que morre dentro da gente, do que matamos, do que carregamos morto, do peso, dos nossos pesos, das nossas mortes e dos nossos pássaros.

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