“Não está morto o que eternamente jaz inanimado, e em estranhas realidades até a morte pode morrer”
H. P. Lovecraft
A citação que abre nosso texto está presente na segunda parte do clássico O Chamado de Cthulhu, de H. P. Lovecraft, um dos primeiros magos do terror a fundir o gênero com ficção científica, mas cujo reconhecimento só chegou após a sua morte.
Desta forma, ao publicar suas histórias, mais especificamente O Chamado de Cthulhu, ele não tinha dimensão de que estava iniciando um conjunto de mitos que seriam estendidos por outros nomes da literatura fantástica, no que mais tarde ficaria conhecido como os Mitos de Cthulhu; uma mitologia que envolve o nefasto personagem principal que dá título ao conto mais famoso de Lovecraft.
Talvez a contribuição mais forte para estes mitos, além dos textos originais de Lovecraft, se deva a August Derleth, que intitulou a pseudo-mitologia que envolve o guardião Cthulhu e os Grandes Anciões em seu panteão como Cthulhu Mythos.
Todavia, fica claro ao ler os contos escritos por Lovecraft que ele nunca se preocupou em estabelecer estas bases de maneira coerente para formatar uma mitologia, mas utilizava bastante os Grandes Antigos que a povoavam de uma maneira que adornasse e colorisse seus contos, mas como um coadjuvante.
Segundo o próprio autor disse em algumas de suas cartas endereçadas a seus amigos, sua mitologia não seria falsa, mas seria uma anti-mitologia – a única mitologia que seria possível de acreditar nos tempos modernos e que se distanciava da mitologia que procura explicar a história da humanidade, do universo.
Apesar do conto Dagon ser precedente, podemos encarar O Chamado de Cthulhu como o ponto de partida do que viria a ser conhecido pelos admiradores da obra de Lovecraft como os Mitos de Chutulhu e que transcendeu a obra do autor, aparecendo em textos de grandes nomes da literatura fantástica.
Mas o que isso tudo a ver com Revival, obra de Stephen King? Simples. Esta é a mais nova contribuição literária à mitologia “chutulhuniana“.
Sinopse
“Em uma cidadezinha na Nova Inglaterra, mais de meio século atrás, uma sombra recai sobre um menino que brinca com seus soldadinhos de plástico no quintal. Jamie Morton olha para o alto e vê a figura impressionante do novo pastor.
“O reverendo Charles Jacobs, junto com a bela esposa e o filho, chegam para reacender a fé local. Homens e meninos, mulheres e garotas, todos ficam encantados pela família perfeita e os sermões contagiantes.
“Jamie e o reverendo passam a compartilhar um elo ainda mais forte, baseado em uma obsessão secreta. Até que uma desgraça atinge Jacobs e o faz ser banido da cidade. Décadas depois, Jamie carrega seus próprios demônios.
“Integrante de uma banda que vive na estrada, ele leva uma vida nômade no mais puro estilo sexo, drogas e rock and roll, fugindo da própria tragédia familiar. Agora, com trinta e poucos anos, viciado em heroína, perdido, desesperado, Jamie reencontra o antigo pastor.
“O elo que os unia se transforma em um pacto que assustaria até o diabo, com sérias consequências para os dois, e Jamie percebe que “reviver” pode adquirir vários significados. “
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=4Tv15MDpceY]Book Trailer de Revival divulgado no Reino Unido.
Comentário sobre “Revival”
Neil Gaiman, renomado escritor britânico, diz que a importância de Stephen King vai além de seus livros.
Segundo suas hipóteses, os livros de Stephen King serão uma forma das gerações futuras conhecer a vida cotidiana da sociedade americana a partir de 1974:
“Ele é um mestre em refletir o mundo em que vê, registrando isso nas páginas. A ascensão e queda do videocassete, o surgimento do Google e dos smartphones. Está tudo lá, atrás de monstros e da noite, tornando tudo mais real“.
O que Gaiman deixou de mencionar é que muito dos personagens de Stephen King são autorreferenciais, não sendo diferente neste Revival, clássico moderno de sua extensa bibliografia.
Elementos como o guitarrista base mediano e o abuso de drogas formatam passagens quase confessionais e auto-inspiradas como base da construção do personagem principal, Jamie Morton.
É bem verdade que a primeira centena de páginas de Revival é saborosa apenas pelo carisma saudosista da escrita de King, sendo uma recordação que até certo ponto carece de um pouco de criatividade.
Mas já vimos Stephen King desenvolver suas obras numa crescente até atingir o clímax genial. “Saco de Ossos”, livro lançado nos anos noventa, que o diga.
O grande valor desta primeira terça parte de Revival é a forma como ele costura bem as bases que irão ecoar até a última linha, como amarras fortes entre os personagens, muitas delas que servirão de liga e motivo para as duas partes subsequentes.
O próprio Stephen King assume que “a seção que abre o livro é bastante autobiográfica”.
Além disso, aos 68 anos, Stephen King presta um tributo a seus mestres!
Não que exista uma divisão pré-estabelecida para a estória de Revival , mas existem momentos cruciais que servem de pontos de inflexão como aqueles ritos de passagem que dividem uma vida, ou reencontros marcantes.
Como já é costumeiro nas páginas escritas pelo Rei do Maine, as referências à cultura pop estão salpicadas como bom tempero para a história, aumentando gradativamente o sabor da narrativa a cada página.
Insinuações roqueiras, descrição minuciosa de carros antigos e programas de televisão constroem o ambiente por onde seus personagens desfilam seus destinos, conservando uma nostalgia singela por todas as suas páginas.
Jamie Morton, por exemplo, é referenciado em dado momento como “um Billy Idol na sarjeta”. Aliás, o mundo da música americana de segundo escalão serve como plano de fundo para grande parte do desenrolar da trama.
O Jamie adulto, além do vício em heroína, seguiu carreira musical, como guitarrista de várias bandas errantes e efêmeras do rock setentista, refletindo no personagem um dos sonhos de Stephen King.
“Meu Deus, sim, sempre quis ser guitarrista”, declara Stephen King em recente entrevista, alem de enaltecer a oportunidade de escrever sobre guitarras e a gravação musical.
Todavia, o vício em heroína arruinou a carreira de Jamie como músico, levando-o ao nível mais fundo que o seu poço podia chegar. Nesse ponto de inflexão, Charlie Jacobs reaparece na história com uma forma inovadora e salvadora para seu velho conhecido.
Jamie Morton é o narrador da história e conhecera Jacobs em 1962, como um compassivo e carismático reverendo de sua congregação. A oscilação harmônica e não coordenada do espaço temporal da narrativa nos mostrarão um Charlie Jacobs evoluindo do pastor convencional para um mercador de milagres com inspirações ocultista.
A mágica de Stephen King começa como o ribombar fulminante de um infarto, tirando a história do enfado nostálgico para o curiosamente instigante.
Com uma habilidade inigualável saímos de uma fábula americana digna de uma película de Frank Capra para uma cena digna de Cemitério Maldito, ponto crucial da trama de Revival, que transformará o compassivo pastor numa desumana e moderna versão de Herbert West, cientista da narrativa de Lovecraft que inspirou o filme Re-Animator.
O primeiro ponto de inflexão de Revival é o acidente que vitimiza a família de Jacobs, delineado por contornos apaixonantes e brutalmente mortos pela pena de Stephen King. Sim, é uma passagem autorreferencial, presente em alguns de seus livros, mas funciona como apenas uma delas.
Existe uma menção ao parque Joyland, e uma frase conhecida daqueles que acompanharam o ka-tet de Roland, na saga A Torre Negra: “A vide é uma roda, e sempre volta ao ponto onde começou“. Ou seja, Stephen King, em Revival, dialoga não só com seus mestres, mas também com sua própria obra.
Além disso, nunca é demais enaltecer o poderio da criação de ambientes e descrições de Stephen King. Tudo é tão bem delineado e as cores são magistralmente pintadas que podemos assistir a um filme mental com o avançar das páginas.
Ao contrário do que podemos pensar, mesmo sendo um dos autores mais adaptados do cinema, Stephen King afirma nunca pensar em filmes quando escreve, mas assume ser escritor muito visual:
“Você tem de lembrar que faço parte da primeira geração que tomou contato com histórias em filme, antes de aprender a ler. Os filmes têm sua própria linguagem , e é uma linguagem que falo muito bem”.
Outro elemento que Stephen King se vale com a maestria tradicional são as visões aterradoras e os pesadelos mortificantes, como forma de aclimatar as sensações de seus personagens.
Novamente Stephen King se mostrou eloquente nas críticas em Revival, especialmente no que tange a exploração da fé, da consciência religiosa, o conceito de cura milagrosa e o fanatismo religioso.
A construção do mundo dos pregadores religiosos e dos tele-evangelistas é crua e sem floreios, evidenciando uma preocupação de Stephen King com a prática ao redor do mundo: “Acredito que o fundamentalismo americano, que se tornou em tele-evangelismo, trocou espiritualidade por superstição” , afirma o autor que coloca em Jacobs traços inequívocos dos costumeiros pregadores que estão aos borbotões na televisão, fazendo dinheiro com a ingenuidade, fé e desespero de seres humanos enfraquecidos.
Algumas reflexões são desconcertantes nas palavras de Jacobs, como a que afirma ser “Deus uma construção lucrativa e autossustentável das igrejas do mundo”.
Mas ele tem seu propósito de vida, precisa do dinheiro para executá-lo e, por mais pernicioso que seja, não podemos negar sua natureza teológica, sendo distante da busca dos prazeres terrenos advindos da fortuna amealhada com o mercado da fé.
Se já suspeitas qual seja o objetivo do pastor Jacobs não me culpe. Um leitor atento, juntará o trocadilho do nome Revival com o diálogo entre irmãos no fim da segunda parte e irá inferir qual é o desejo de Jacobs. Sim, mas será erroneamente!
Revival foi lançado em 2014 nos Estados Unidos e em 2015 no Brasil. Acredito que ao findar da última frase, para aqueles que não absorvem as referências presentes no decorrer da trama, tudo parecerá datado e infantil. Mas lembre-se, Revival é um tributo de Stephen King a seus mestres!
A dedicatória já evidencia este fato ao elencar nomes que fizeram história na literatura fantástica, como o mundo que habitam os mortos inspirado por Lovecraft, a eletricidade especial e sua aplicação final remetendo ao clássico Frankenstein, de Mary Shelley, citações diretas ao conto tradicional de W. W. Jacobs, intitulado A Pata do Macaco, além de explorar o conhecimento arcano de livros e grimórios proibidos pela Igreja Católica.
O próprio Stephen King admite homenagem quando diz que “queria que o fim do livro fosse infernal, mas também queria homenagear Lovecraft, e para isso não podia usar a visão cristã do inferno, com fogo e enxofre.”
Todavia, a questão que move a engrenagem da trama, mesmo sendo reflexo da realidade, ecoa após o desfecho de Revival: “o que nos aguarda no pós-vida”?
Esta será apenas uma das versões que King já nos ofereceu, que completa a burocracia do conto Afterlife (recém publicada em novembro de 2015, na antologia “O Bazar dos Sonhos Ruins”) e o épico de fantasia “A Torre Negra”, afinal, “existem outros mundos além deste”!
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