A velha e desgastada narrativa todo mundo já conhece: “ahhhhh, bom era com o Max”, “morreu no Arise”, “ahhh, nem parece Sepultura”.
O discurso das “viúvas”, tão em voga ultimamente, só gera ainda mais interesse e ibope para a banda. É importante nos despirmos de qualquer preconceito e aceitarmos de uma vez por todas que o Sepultura é um sobrevivente, que atravessou turbulências, períodos de incertezas e desilusões, mas sobreviveu heroicamente e representa o Brasil mundo afora, quer você queira ou não.
Os tempos são outros, as prioridades mudaram, mas os caras estão aí, dando o sangue e a alma, produzindo arte de qualidade. Sendo assim, vamos aos fatos: “Quadra”, décimo quinto álbum da banda e nono da era Derrick Green, talvez seja seu trabalho mais ousado.
Ainda não sei dizer se é uma continuação natural do excelente “Machine Messiah”, mas trata-se de um álbum fundamental na discografia da banda. Um disco que precisava ser feito nesse momento.
Se eu tivesse que definir “Quadra” em poucas palavras, desconcertante e imprevisível talvez fossem as nomenclaturas mais aceitáveis. A princípio um álbum de difícil digestão, necessitando de tempo e estado de espírito bem específico para um completo regozijo de seu repertório, “Quadra” não segue linhas pré-estabelecidas ou um andamento trivial, oferendo soluções harmônicas incomuns ao gênero, desconstruindo paradigmas e arquétipos da sua já muito conhecida sonoridade.
Esqueça padrões!
Aqui estamos diante da porta de entrada para um novo mundo de possibilidades, onde as emoções e a percepção acerca da realidade expandem exponencialmente.
Pretendo, a partir daqui, discorrer sobre os destaques do álbum, obviamente, na minha modesta opinião. “Fui tapeado”, já bem dizia o Pica-Pau, pois ao ouvir a visceral e contundente “Isolation'”, faixa de abertura de “Quadra”, pensei estar diante de um retorno às raízes thrash metal ancestrais. Faixa velocíssima, sem muitos floreios (talvez somente na imponente introdução orquestrada), palhetadas ríspidas e uma salutar pegada old school à la Kreator, me abriram um sorriso de orelha a orelha, porém tive meu tapete puxado com a quebradeira cadenciada de “Means to an End”. Composição com refrão forte e impactante, tendo Eloy Casagrande virando do avesso na bateria.
O que esse garoto faz num kit de bateria é algo que deve despertar interesse da comunidade científica. A sequência com “Last Time” dá uma leve retornada ao thrash metal, porém com alternâncias e estruturas mais complexas, com algum clima mais viajante no terço final. E ainda estamos no começo, amiguinhos…
O disco prossegue, por vezes bastante empolgante, por vezes um pouco cansativo e intrincado, mas mantendo o ritmo. “Ali” é peso e groove aos borbotões, direta e sem muitos subterfúgios rítmicos. Se não for a música mais pesada já concebida pelo quarteto, está quase lá.
Algum tempo depois surge “Guardians of the Earth”, uma epopeia de peso, uma jornada sonora onde a banda definitivamente nunca ousou chegar. Arranjos orquestrais, corais, grandiosidade. Não consigo definir mais precisamente. É algo catártico!
Confesso que precisei de algumas audições até aqui para ao menos fundamentar um argumento justo, pois “Quadra” me soou intragável numa primeira instância.
Andreas Kisser só pode estar de brincadeira com a nossa cara, dando a nós o direito de nos recolhermos a nossa patética insignificância. Virtuosismo e bom gosto elevado a enésima potência. Derrick Green sempre despertou sentimentos muito distintos: ou ama-se ou odeia-se em igual proporção, porém, aqui ele mostrou a que veio. Variedade, potência e versatilidade parecem fazer parte do cotidiano do homem já há algum tempo, mas em “Quadra” seus dotes estão muito mais evidentes e bem encaixados, num nítido processo de constante evolução. E o Paulo Jr? Paulo Jr?? Ahhh, o baixista. Deve estar lá, em algum lugar, mas deve (pelo menos em “Raging Void” ele aparece).
“Autem” é uma composição consistente, muito pesada, que tem no refrão e na sua cadência peculiar (lembra ritmos regionais, algo como um baião demoníaco) seus pontos altos. A instrumental “The Pentagram” é quase progressiva na mais pura acepção da terminologia. Sinistra, pesada, angustiante, quebrada, lembrando, ainda que vagamente, alguns devaneios do Atheist ou Cynic em sua estrutura.
“Agony of Defeat” segue numa vibe bem mais melódica, introspectiva, profunda, com Derrick oscilando entre o suave e o gutural e um clima crescente envolvente. Corais e orquestrações muito bem alinhados contribuem para um momento dos mais épicos do trabalho. Lindíssima!
Experiência concluída e o que eu pude aprender com tudo isso? Aprendi que o velho Sepultura fora “sepultado” no “Roots”, e o que veio a seguir foi o renascimento, a gênese de uma nova era, de um novo caminho a ser trilhado.
As viúvas continuarão a chorar! Eu mesmo tenho minha parcela de viúva a ser devidamente enterrada, mas preciso ser maduro e evoluído o suficiente para aceitar que “Quadra” é um grande álbum. Talvez a maior empreitada em que estes sujeitos se meteram até hoje.
Um disco diferente de tudo, impossível de ser compreendido imediatamente, sendo necessário uma observação minuciosa de todas as nuances e camadas a fim de uma plena assimilação.
Em outras palavras: afrontador, desumano e apoteótico. Definitivamente, você nunca mais verá o Sepultura com os mesmos olhos depois desse disco!
FAIXAS
1. Isolation
2. Means to an End
3. Last Time
4. Capital Enslavement
5. Ali
6. Raging Void
7. Guardians of Earth
8. The Pentagram
9. Autem
10. Quadra
11. Agony of Defeat
12. Fear, Pain, Chaos, Suffering
FORMAÇÃO
Paulo Jr. (baixo)
Andreas Kisser (guitarra e backing vocals)
Derrick Green (vocal)
Eloy Casagrande (bateria e percussão)
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Texto bem escrito assim é, hoje, coisa rara, ainda mais quando o tema é música. E sobre o disco, é daqueles que parecem melhores a cada vez que se ouve.