“A castidade de uma mulher é um terçol no olho do Diabo”
Por essência, a comédia se tornou um viés das artes cênicas que busca tornar jocosos alguns movimentos do cotidiano.
O objetivo pode ser atingido pela via do escracho, ou ainda, pelo sarcasmo.
O mais interessante nas duas formas básicas de se estabelecer a comédia é a crítica a certos hábitos e condutas dos seres humanos, ditos racionais.
No teatro grego existiam duas classes para as artes cênicas.
A tragédia era uma narrativa de exclusividade dos seres superiores, ou seja, deuses e heróis mitológicos. Já a comédia discorria sobre pessoas comuns, tendo um caráter menor.
Com a evolução humana, as artes não ficaram presas a estes dogmas e muitas obras foram concebidas elevando a comédia a um patamar muito mais elevado de crítica social, psicológica e comportamental.
Hoje, quero escrever um pouco sobre uma destas obras, que busca, no sarcasmo cômico, refletir sobre valores arcaicos que ainda se mostram arraigados na sociedade moderna.
Apresento o clássico em preto e branco de Ingmar Bergman, “O Olho do Diabo”, uma mistura de fantasia e inocência perversa embalada numa comédia popular que se perde em meio às outras obras clássicas do diretor.
https://youtu.be/RCLcbZI_qOk
Antes de adentrarmos ao universo criado por Bergman nesta seminal obra, seria interessante apresentar alguns detalhes pertinentes de sua biografia.
Um primeiro detalhe que faz desta obra uma peça altamente pessoal é a o fato do diretor ser filho de um pastor.
Pode parecer um elemento ordinário de sua biografia, mas especialmente em O Olho do Diabo as crenças da era vitoriana, especialmente o cristianismo em todos os seus dogmas, são criticadas de modo sarcástico e sutil.
Estes elementos não são restritos a esta obra, e em grande parte de sua filmografia ele se utilizou de alegorias religiosas desprovidas de amor e compaixão divinas.
Ingmar Bergman também trabalhou com teatro, arte cuja influência pode ser vista claramente nesta película, dividida em três atos, cada um deles introduzido por uma narrador e o clima de comédia de costumes, tão teatral, que foi utilizado em outras obras, como o magistral Sorrisos de uma Noite de Amor (1955).
Em verdade, o trato teatral é parte integrante em O Olho do Diabo, cujo narrador seria um intermediador de um embate ente Céu e Inferno.
No âmbito da comédia de costumes, ainda podemos perceber que a obra é acompanhada por uma trilha sonora inteiramente executada em um cravo.
O tema principal é uma composição de Domenico Scarlatti, compositor italiano contemporâneo de Bach e Händel, que fora utilizada em uma oportunidade precedente numa comédia de costumes.
Além disso, Bergman era um admirador da obra de Molière, dramaturgo francês e considerado um dos maiores nomes da comédia satírica.
As ligações vão além da admiração, pois Molière escreveu a tragicomédia Don Juan ou Le Festin de Pierre, uma peça em cinco atos que gira em torno de um personagem libertino, aristocrata sedutor que coleciona conquistas, valente que profere blasfêmias e adora os duelos de espada.
Em O Olho do Diabo temos aquele Don Juan mítico, oposto de um Romeu, um deus do charme e de lábias irresistíveis, que permeia os diversos campos da cultura pop.
Vamos ao singelo, mas genial enredo. Como já estabelecido no preâmbulo deste texto, a castidade de uma mulher é um terçol no olho do Diabo.
Pois bem, o Diabo sofre por um terçol, causado por uma virgem donzela que vive no interior da bela – e tão ensolarada quanto possível na Escandinávia – Suécia, e precisa resolver este, não tão sério, mas incômodo problema.
Após uma reflexão sobre a melhor forma de acabar com a castidade da camponesa, a inteligência infernal chama pelo maior conquistador que pisou sobre a Terra: Don Juan.
O acordo é simples. Don Juan terá sua sentença eterna amenizada se for até a Terra e tirar a virgindade da filha de um ingênuo interiorano, que acredita no amor verdadeiro.
O conquistador libertino está confinado ao Inferno e sua pena seria a tortura da insatisfação sexual por toda a eternidade.
Todas as manhãs ele é acordado por uma exuberante mulher, que o provoca em todas as artimanhas infernais da sexualidade, até vencer a relutância do condenado e desaparece assim que ele cede ao desejo carnal, sem satisfazê-lo.
Com a confiança de um lendário conquistador, ele aceita o desafio.
Mas ele não se desloca ao terreno do certame sozinho, seu escudeiro Pablo o acompanha e terá um papel decisivo na missão. Nas histórias originais de Don Juan o nome do escudeiro é diferente e não só isso é um diferencial.
Aqui, Pablo tem uma personalidade individual e não busca somente emular os hábitos de seu mestre como nos contos originais de Don Juan.
Os dois, Juan e Pablo, emergem do reino diabólico subterrâneo para um ambiente que nos remete a um paraíso terreno com clima vitoriano.
Como peça cinematográfica, esta película encanta pelas técnicas teatrais utilizadas. Sendo introduzida por um narrador em um tablado, formalmente vestido e que faz comentários instigantes quanto à sequência dos acontecimentos.
Os cenários principais são o Inferno, residência do Diabo, e o interior sueco, onde habita a virgem donzela, crente do amor verdadeiro, junto com seus pais, um pastor e sua esposa frustrada. A batalha é travada.
O nefasto, libertino e indecente exército infernal torce pelo êxito dos enviados do Diabo e derrocada dos anjos e seres celestiais que se regozijam pela castidade, pureza e inocência baseada no amor singelo.
O algoz Juan desfila toda a sua experiência de conquistador imperdoável até conseguir que a donzela se entregue à sua luxúria carregada por séculos de insaciedade.
Em contrapartida, os ardis diabólicos não contavam com a sagacidade do amor.
O inabalável conquistador se vê impossibilitado de executar sua tarefa por ter sido arrebatado pela paixão, como corolário, as forças do inferno perdem a batalha para as vibrações celestiais.
Como punição pela falha em uma simples missão, Don Juan é condenado pelo Diabo a escutar, em sua infernal alcova, os sons da noite de núpcias de sua amada camponesa.
Esta pena seria cômica, caso não fosse trágica, pois, indiretamente, o condenado obteve êxito em sua missão.
Ainda carregando a marca do beijo de Don Juan nos lábios, a nobre camponesa jura para seu prometido nunca ter beijado outros lábios em sua vida, senão os dele.
A mentira restabelece as forças do Inferno e o maldito terçol desaparece do olho do Diabo.
A luta vitoriana entre o bem e o mal seguirá adiante, onde nem mesmo o amor puro foi capaz de manter o pecado afastado.
Paralelamente, existe uma vitoria inversa, ou seja, o Paraíso tem sua parcela de êxito na aventura adúltera da mãe com o amante e escudeiro Pablo, que confessa a traição ao marido que a perdoa, posteriormente.
https://youtu.be/zo-gXExFlis
As origens deste singular filme não são menos interessantes.
Um detalhe que não pode passar despercebido é a pressão do estúdio Svensk Filmindustri quanto a realização desta película.
Com o objetivo de receber o aval do estúdio para realizar o clássico A Fonte da Donzela (1959) – que não gerava confiança por parte da produtora quanto ao apelo público – Bergman se comprometeu a trabalhar em uma comédia.
A versão final do filme retirou as palavras do narrador que traria um texto quase confessional de Bergman quanto ao caráter deste projeto em sua filmografia:
“Eu gostaria de implorar a vocês que me perdoem – as idéias não são minhas. Mas eu tenho minhas obrigações como ator; também preciso me sustentar e – porque não? – sustentar minhas ambições.“
As frases podem ter sido suplantadas, mas o tom delas permeia alguns diálogos.
O maior nome do cinema sueco de sua época se vê num momento descrito por ele próprio como “inseguro e improdutivo” e nenhuma ideia nascia em sua mente brilhante para executar o projeto condicionado pela produtora.
A inspiração para O Olho do Diabo veio de um drama produzido para o rádio dinamarquês denominado O Retorno de Don Juan, cujos direitos foram comprados pela produtora Svensk Filmindustri.
A figura de Don Juan estava muito popular naquela década, devido às múltiplas adaptações para o teatro, tendo Bergman dirigido um espetáculo baseado na obra de Moliere em 1956.
Um tempero saboroso neste filme é a forma de jogo promovido pelo diretor. Temos a nítida sensação de assistir uma peleja entre o céu e o inferno como na aposta pela lealdade de Jó.
Para muitos autores, esta obra funciona como um marco de transição para dois momentos importantes da carreira de Ingmar Bergman, para mim, é apenas um dos meus filmes favoritos.
Para finalizar, debrucemos sobre a crítica ao pensamento religioso arraigado nas tradições vitorianas que esta explícita na descrição do Inferno de Bergman e seu máximo regente:
“O inferno é com um cone. No fundo estão os pecadores primários, cujos tormentos acabam rapidamente. Novos infernos se sobrepõem e perto da Terra está o nosso inferno, construído por cérebros interessados e pelos maiores puritanos da cristandade. Esta paróquia invertida é comandada pelo Diabo, que amadureceu ao longo da evolução humana e é constantemente, recriado, renovado e rejuvenescido, tornando-se cada vez mais humano, eu diria espiritualizado.”
Ou seja, o Inferno como o imaginamos, nada mais é que uma criação nossa.
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