Alguma vez, prezado leitor, se pegou, no mais recôncavo de sua consciência, desejando se resfolegar nas mais libidinosas, violentas e deturpadas ações humanas?

Já teve vontade de assaltar um banco?

Dirigir à toda velocidade na contra-mão?

Matar da maneira mais hedionda algum nazista? Simplesmente torturar um policial, só pelo prazer de ser?

Já pensou em desobedecer pelo menos 90% dos dez mandamentos deliberadamente só pelo deleite da contravenção correndo em suas veias?

Se a sua resposta foi afirmativa para alguma das questões acima, eu espero que tenha contido sua natureza destrutiva dentro dos muros dos seus desejos, mas, principalmente, se sua mente que não conta inverdades para você mesmo vibrou com cada uma das perguntas e assentiu em todas, então você é um fã de Quentin Tarantino.

Por que?

Ora, pelo simples motivo de podermos viver, mesmo que como espectadores, todas as estas sensações que são tão nefastas e proibidas para um bom convívio social, quanto tentadoras nesta nossa época onde tudo está no limite.

Tarantino é o cineasta mais bem sucedido a emergir no mundo do cinema no início dos anos noventa, com obras inovadoras carregadas de humor negro, contexto beat e tempero gangster.

O diretor mudou a cara do cinema denominado cult com roteiros viscerais que sintetizavam thrillers de Hong Kong e influências Godard, Jean-Pierre Melville, Stanley Kubrick e Sam Fuller, criando um estilo pós-moderno de apelo pop e que atingia em cheio os jovens da nova geração X (a geração nascida após o “Baby boom”, e embora não haja acordo em relação ao período que a expressão abrange, ela geralmente inclui as pessoas nascidas a partir do início dos anos 1960 até o final dos anos 1970, podendo alcançar o início dos anos 1980, sem contudo ultrapassar 1984), denominação cunhada pelo escritor Douglas Coupland e que a descreve como “não conformista, porém consumista, adora tecnologia, irônica quanto à relacionamentos, cínica quanto à política e que tende ao multicuturalismo liberal. “

Tarantino é quase um porta-voz dos últimos seres pertencentes a esta geração e sua obra tem início em 1992 com o clássico Cães de Aluguel (estamos desconsiderando o amador “My Best Friend’s Birthday”).

Neste filme, o cineasta começa a criar sua assinatura no mundo do cinema que, hoje em dia, já é inconfundível, trazendo roteiros carregados de violência , longas sequências de diálogos com excêntricos debates acerca da cultura pop, de tal forma à glorificá-la.

Em geral, o contexto do filme é contraposto de maneira até mesmo paradoxal à referências do cinema B e canções pop sessentistas e setentistas.

Tarantino, antes de se tornar um renomado cinesta, trabalhou por cinco anos na histórica vídeo-locadora de Los Angeles, Video Archives, onde absorveu todo o possível de películas super violentas, faroeste “espaguete” e épicos do Kung Fu.

Em 1990, ele começou a trabalhar com o produtor John Langley e se mudou para Hollywood. Fizeram inúmeros contatos e levantaram um milhão e meio de dólares que era mais do que o suficiente para executar o projeto, que foi lançado dois anos depois e que ganhou grande atenção da crítica, denominado Reservoir Dogs (Cães de Aluguel, no Brasil).

CÃES DE ALUGUEL: UMA SINOPSE

O roteiro é a menor das estrelas deste filme, pois a genialidade do roteirista/diretor está exposta em outros detalhes.

A história gira em torno de um mal sucedido roubo de diamantes, contada em flashbacks, que narra como Joe Cabot (Lawrence Tierney), um experiente criminoso de Los Angeles, reuniu seis bandidos para a empreitada.

Eles vestem ternos combinando e usam apelidos “coloridos”: Mr. Blonde (Michael Madsen), Mr. Blue (Edward Bunker), Mr. Brown (Quentin Tarantino), Mr. Orange (Tim Roth), Mr. Pink (Steve Buscemi) e Mr. White (Harvey Keitel).

Com eles, além do mentor Joe Cabot (Lawrence Tierney), está seu filho, o “Cara Legal” Eddie Cabot (Chris Penn).

Porém durante o assalto algo saiu errado, pois diversos policiais esperavam no local.

Mr. White leva Mr. Orange, que na fuga foi baleado na barriga e morrerá se não tiver logo atendimento médico, para o armazém onde um combinado prévio mandava que todos se encontrassem.

Logo depois chega Mr. Pink (Steve Buscemi), que está certo que um deles é um policial disfarçado e insiste que eles precisam descobrir quem os traiu. Em um clima de acusações mútuas a situação fica cada vez mais insustentável.

(Fonte: www.adorocinema.com)

UMA OPINIÃO SOBRE CÃES DE ALUGUEL

A primeira experiência diferenciada no filme se dá no diálogo inicial onde uma análise destrinchada de uma letra musical da diva Madonna ocupa toda a introdução, junto a uma crítica em forma de diálogo quanto ao costume americano das famosas gorjetas.

Tudo é tão comum e efêmero que chega a ser irônico.

Afinal gangsteres discutindo cultura pop e comportamento humano é tão surreal quanto improvável, e tal sutileza crítica só é menos enaltecida por causa do repentino banho de sangue sem aviso prévio.

A poucos minutos tentávamos compreender a sequência frenética de diálogos que confrontavam opiniões divergentes em uma mesa qualquer de uma lanchonete tipicamente americana e descansávamos o cérebro curtindo a bela canção introdutória até que, de repente, sem questionamentos ou apelo cult, o banho de sangue começa.

É impactante a mudança brutal de direcionamento que o diretor imprime no inicio de seu roteiro.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=q2Xi3ioasik&w=560&h=315]A clássica introdução do filme com a canção Little Green Bag. 

Outro detalhe que salta aos olhos de imediato é a composição do elenco.

Formado por atores excepcionais em atuações irretocáveis, o elenco é quase totalmente composto por homens o que pode ter dado ao ambiente uma dose maciça de testosterona.

Esta observação pode ser corroborada por uma das mais memoráveis cenas de toda a filmografia de Tarantino, onde Michael Madsen, com uma atuação digna de nota, protagoniza com seu personagem a sequência mais impactante do filme, ao som de seu programa de rádio favorito: The K-Billy Supersounds of 70’s.

A interpretação do ator é tão destacável que a cena de tortura explícita se torna natural, tamanha a característica habitual com que o ator encarna a crueldade inerente a seu gangster.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=U9rIBE0KM-w&w=560&h=315] Cena de tortura perpetrada por Mr. Blonde ao som de Stuck In a Middle With You..

Os lapsos temporais do filme são imprescindíveis e a variação de passado e presente que formam uma não-linearidade na história que tem seu maior espaço dedicado ao que se passa, após o malfadado assalto, num armazém.

As cenas desta locação são feitas em sequências de “tempo real” que são entrecortadas por complexos flashbacks que explicam como o roubo foi planejado.

Esta disjunção temporal parece um jogo, uma brincadeira que diverte o diretor e traz um sabor diferente à história.

Outro detalhe interessante é observar que todo o contexto da violência explícita que transborda na tela se assemelha ao que é visto no cinema blaxploitation do fim dos anos 80.

Tal sensação pode ser variável de acordo com espectador, pois os diálogos em partes isoladas trazem expressões racistas quanto ao modus operandi dos gangsteres negros, e o elenco de criminosos é, em sua totalidade, formado por atores brancos.

Quem degusta o filme experimenta a dicotomia da violência explícita, com pequenas pitadas de cinema noir, contando o que se passa antes do assalto, e como acompanhamento temos uma seleção de músicas setentistas tão cults quanto o que viria a se tornar o filme.

Ao fim da trama toda a experiência distópica soa quase filosófica.

INFLUÊNCIAS

O filmes de Tarantino são recheados de referências a outros diretores e filmes antigos, bem como, formas diferentes de cultura pop.

Cães de Aluguel parece ter sido forjado nos moldes de O grande Golpe, filme de Kubrick, lançado em 1956, que traz uma autópsia imparcial de um assalto, com roteiro inspirado num livro de Lionel White, chamado Clean Break e, talvez, este filme seja a maior influência deste filme de estréia de Tarantino. Seja a não-linearidade da cronologia ou a multiplicidade de pontos de vista dos personagens.

Outro filme que pode ser enfileirado como influência de Cães de Aluguel é um datado de 1950, denominado O Segredo das Jóias.

Com direção de John Huston, este título faz parte dos clássicos da Warner Bros e apresenta um belo filme sobre ladrões.

Evidenciando a intrincada ligação entre os mais diversos envolvidos em um roubo, Huston desfila uma análise sobre relações profissionais ilícitas que vão desde o mentor intelectual do crime, passando por seus seguranças brutamontes até chegar ao simples homem que tem a missão final de abrir o cofre.

Isso tudo adornado por diálogos e uma fotografia muito estilizada. Todo este toque rebuscado forma, de maneira sutil, um retrato de loucura, traição e sociopatia, três elementos que também ajudam a desenhar Cães de Aluguel.

Uma influência de fácil percepção em toda a filmografia do diretor é o cinema oriental. Tal afirmação tem comprovação evidente em clássicos futuros produzidos por suas mãos como nas duas partes de Kill Bill.

Mas aqui, em Cães de Aluguel, não cabe uma influência oriental, certo?

Errado!

O cinema de Hong Kong tem a bandeira hasteada por John Woo, mas um outro diretor daquelas terras produziu um filme no ano de 1987 que pode trazer traços influenciadores da obra de Tarantino.

Estou me referindo a Perigo Extremo, do diretor Ringo Lam.

Na trama oriental, temos um policial infiltrado no mundo do crime que cria laços de lealdade com os homens que deverá prender ao fim de sua missão.

Este filme é, assumidamente, um dos preferidos de Tarantino e os fatos que ocorrem em Cães de Aluguel após o fracassado assalto possuem referência direta ao filme de Lam, um diretor que muitos afirmam ter o estilo roubado por Quentin, e que  ficou conhecido por ir para Hollywood dirigir filmes de Jean-Claude Van Damme.

THE K-BILLY SUPERSOUNDS

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Os amantes do trabalho de Tarantino sabem que a experiência de um filme do diretor não está completa sem suas seleções musicais que embalam as tramas.

Alguns irão concordar que os filmes do diretor não teriam o mesmo sabor se não fossem temperados com as músicas colocadas de maneira cirúrgica onde são necessárias.

O mais incrível é a maneira natural como músicas do mundo pop e que não foram propriamente compostas para o cinema se encaixam tão confortavelmente na sequência do filme e o complementam de modo indissociável.

A trilha sonora de Cães de Aluguel foi a primeira apresentada por Tarantino e praticamente estruturou a forma como todas as outras trilhas de seus filmes seriam feitas, misturando diálogos do roteiro com canções pop classificadas como “lados B”.

Entretanto, o mais interessante e o maior atrativo da trilha sonora deste filme é o fato de ser apresentado como um program de rádio.

Mas não um programa qualquer de rádio, estamos falando do contextualizado The K-Billy Supersounds Of Seventies que serve de pano de fundo para a cena magistral de tortura protagonizada por Michael Madsen.

Segundo o diretor, ele sente como se a música fosse um contraponto à cena que é apresentada na tela e, na sua estréia, criou um filme com clima do cinema dos anos 50 e com trilha sonora dos anos 70. Juntou sua época cinematográfica preferida com sua mais amada década musical.

O DJ que apresenta o programa de rádio é “representado” pelo comediante Steven Wright e apesar do nome do programa, o set list traz canções que vão desde os anos 60 até os anos 80, com destaque especial para a já citada Little Green Bag, de George Baker Selection, o cover visceral de Magic Carpet Ride, originalmente gravada pelo Steppenwolf (sim, o mesmo de Born To Be Wild), mas que aqui é apresentada pela banda Bedlam, que ainda apresenta a belíssima Harvest Moon, além de Stuck In A Middle With You do Stealers Wheel, uma canção composta nos moldes de Bob Dylan.

Cães de Aluguel não é somente o pontapé inicial da carreira do diretor mais original a surgir no início dos anos 90, ele é, também, uma ode à testosterona, à paixão violenta e ao excesso de sangue que explodem os limites da razão humana.

Entretanto, a peculiaridade do filme esta em amarrar todo este fervor religioso de uma maneira quase poética, num sentido “culturalmente pop”.

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