Acredito que desde a série Fringe uma história de ficção científica não me seduzia tanto quanto “O Problema dos Três Corpos”, livro que inaugura a mais importante trilogia chinesa da atualidade, “Remembrance of Earth’s Past”, à cargo do escritor Cixin Liu, engenheiro por formação e o primeiro escritor não anglófono a vencer o prêmio Hugo de melhor romance.
Usando como ponto de partida a China de final do anos 1960, imersa numa Revolução Cultural, Cixin cria uma narrativa sanfonada em sua linha temporal que revela um projeto secreto envolvendo um pequeno grupo de astrofísicos, militares e engenheiros, além de ondas sonoras, extraterrestres e conspirações mundiais opostas.
Nessa direção, “O Problema dos Três Corpos” caminha pelos classicismos da ficção científica, na melhor escola de Arthur C. Clarke, usando como gatilho uma decisão científica que colocará, cinquenta anos depois, o planeta Terra às portas de uma invasão alienígena por uma civilização à beira do colapso.
Mas não pense que a narrativa se apresenta de forma datada, até mesmo porque a estrutura da escrita difere do usual ocidental (mesmo que a tradução brasileira seja feita da tradução do chinês para o inglês essa característica permanece), consequência imediata do idioma em que foi escrito o livro.
Os personagens são bem construídos dentro da tradição “caricata” e exagerada das artes orientais (basta uma olhada no cinema oriental para entender o que quero dizer), a escrita é dinâmica e com ritmo certo, mesclando técnicas literárias usadas por thrillers conspiratórios, como se uma (para simplificar a alegoria) “versão chinesa” Dan Brown escrevesse uma versão moderna de Arquivo X.
Cixin também se valeu de um artifício sagaz para introduzir a temática alienígena: um jogo em realidade aumentada interessantíssimo, cujas descrições me remeteram ao trabalho do espanhol J. J. Benítez em seu clássico “A Rebelião de Lúcifer”.
As sequências que se passam dentro do jogo são, sem dúvidas, as mais interessantes. Sem dar spoilers mas exemplificando, em dado momento o jogador monta um computador rústico com trinta mil soldados orientais na época do Império Romano.
Claro que existem complexos e pesados conceitos científicos (como teoria do caos, o problema dos três corpos um grau acima do solucionado por Leonard Euler, radiação cósmica de fundo em micro-ondas, singularidades), mas eles estão diluídos de modo fluido, mesmo que a carga enciclopédica engrosse em certos momentos, quebrando o ritmo, mas dando personalidade à narrativa.
Mesmo assim, nada além do necessário para se compreender a trama e para temperar a ficção científica com as iguarias modernas é usado. Uma tática habilmente melhor utilizada com a história da China que serve de pano de fundo para o desenvolvimento da história, com sutileza de alterar seu curso de modo quase imperceptível.
Além disso, ponto para o escritor em não tentar ser didático demais em sua construção narrativa. Ele não se alonga em desfiar minúcias da conspiração, deixando muito do trabalho de encaixe da linearidade da história por conta do leitor.
E enquanto Cixin Liu desenha sua resposta para certos questionamentos quanto ao futuro da humanidade – como qual seria o próximo estágio da humanidade? Nossa tecnologia nos ultrapassar, viagens estelares, ou seríamos descobertos por extraterrestres? – também desenvolve uma história que não mede consequência no uso do fantástico inerente à ficção científica, bem balanceada com um pouco de sobriedade da plausibilidade.
Claro que existem alguma pontas soltas que serão abordadas nos próximo volumes da trilogia, e isso é esperado de um volume inaugural. “A Floresta Sombria”, o segundo volume já foi publicado no Brasil e a tradução de “Death’s End” não deve demorar a aportar por aqui também. Como cartão de apresentações de Cixin Liu em solo brasileiro, “O Problema dos Três Corpos” se saiu magnificamente bem!
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