Kanun | O Código de Conduta Albanês que Legaliza a Vingança

 

Mergulhe no mundo de Kanun, a lei consuetudinária da Albânia, que legaliza a vingança. Explore suas características únicas, práticas tradicionais e influência nas comunidades albanesas.

Kanun, a lei consuetudinária da Albânia, é um aspecto fascinante da cultura e da sociedade albanesa. Este artigo o levará a uma jornada para explorar as características únicas de Kanun, suas práticas tradicionais e sua influência nas comunidades albanesas. Descubra a rica história e o significado deste antigo sistema jurídico que continua a moldar a vida de muitos na Albânia

Kanun - albania - vendetta

Aqueles que já puderam se debruçar na a leitura do livro “Abril Despedaçado”, escrito pelo autor albanês Ismail Kadaré, e não tiveram tomado contato anteriormente com certos elementos culturais da Albânia ficarão imediatamente impressionados com o código de conduta vivido pelos clãs nortistas daquela nação.

Em especial, no que se refere à vendetta, uma espécie de justiça com as próprias mãos permitida por um código de conduta que estabelece uma série de condições para que a retomada do sangue (significado da palavra vendetta) seja permitida.

Ao ler esta obra singular fui motivado pela curiosidade e segui o caminho da pesquisa para saná-la e descobri que este código de conduta, denominado KANUN, é mais complexo do que o apresentado na obra e que abrangia uma gama de hipóteses imensas, numa tentativa de trazer respostas para as ações mais diversas que a vida cotidiana venha a oferecer.

Hoje vamos mergulhar um pouco nestas páginas deste interessante código de conduta que “legaliza” a vingança.

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O Que é o Kanun?

Kanun é a lei consuetudinária da Albânia, um conjunto de regras e práticas tradicionais que foram transmitidas de geração em geração. É um sistema complexo que governa vários aspectos da vida albanesa, incluindo família, propriedade e relações comunitárias.

O Kanun está profundamente enraizado na cultura albanesa e tem uma influência significativa na vida diária de muitos albaneses. Compreender os fundamentos do Kanun é essencial para obter informações sobre os costumes e tradições da sociedade albanesa.

O termo kanun tem origem no vocábulo grego “κανών” (“canon”), cujo significado, dentre diversas variações, pode ser estabelecido como “controle” ou “lei”, sendo um termo levado da Grécia para a antiguidade turca. 

Algumas das práticas das leis do Kanun podem ser oriundas de alguma época entre a Idade das Pedras e a Idade do Ferro, sendo que este código de conduta só existia de forma oral, até que em meados do século XV foi sistematizado por  Lekë Dukagjini.

Entretanto, sua publicação só se deu após quase quatro séculos, a cargo de Shtjefën Gjeçovi, no periódico  Hylli i Drites, mesmo assim, de modo parcial.

A primeira versão completa somente foi publicada em 1936, após a morte de  Gjeçovi. A partir de então, o Kanun se tornou o conjunto de leis mais tradicional da Albânia.

Este compêndio é baseado em quatro pilares: Honra, Hospitalidade, Direito de Conduta e a Lealdade. 

Kanun de Lekë Dukagjini é composto de 12 livros e 1.262 artigos. 

Nas determinações do Kanun estavam desde casamentos a vinganças, passando por maneiras de construir sua casa, leis de propriedades, palavra falada, além de exemplos e exceções às regras ali impostas.

Muitas das regras ali estabelecidas podem parecer antiquadas e até mesmo bárbaras aos olhos modernos, mas no período de sua implementação esta era a forma que aquela comunidade encontrou de exaltar e manter a justiça que mais lhe parecia adequada. 

É importante salientar que existiram diversos códigos de conduta diferentes, como o Kanun das Montanhas, o Kanun de Scanderbeg, o Kanun de Papa Zhuli, ou  o Kanun da Labëria, mas o Kanun de Lekë Dukagjini era o sistema de leis mais conhecido e seguido, sendo objeto de estudo entre historiadores, mestres em direito, não somente na região albanesa, sendo traduzido para a língua inglesa por Leonard Fox, em 1989. 

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História e Origens de Kanun.

A história e as origens de Kanun remontam aos tempos antigos. Acredita-se que tenha se originado dos ilírios, um antigo povo indo-europeu que habitava a região que hoje é a Albânia. Ao longo dos séculos, Kanun evoluiu e se adaptou à mudança do cenário social e político da Albânia.

Foi influenciado por várias culturas e sistemas jurídicos, incluindo as leis romana, bizantina e otomana. Apesar dessas influências, Kanun conseguiu manter sua distinção e continua a ser parte integrante da cultura albanesa.

Princípios-chave e conceitos de Kanun.

Um dos princípios fundamentais de Kanun é o conceito de honra, altamente valorizado na cultura albanesa. A honra é vista como um aspecto central da identidade pessoal e familiar, e espera-se que os indivíduos defendam sua honra a todo custo.

Outro conceito importante em Kanun é o conceito de rixas de sangue, que são disputas entre famílias ou clãs que podem durar gerações. As rixas de sangue são regidas por um complexo conjunto de regras e rituais, e resolvê-las geralmente requer a intervenção de um mediador ou árbitro. A

lém disso, Kanun coloca uma forte ênfase na importância da hospitalidade e da generosidade, esperando-se que os indivíduos forneçam assistência e apoio aos necessitados. Esses princípios e conceitos-chave formam a base do Kanun e moldam a maneira como ele é praticado e compreendido nas comunidades albanesas.

A Responsabilidade Sobre o Hóspede

Todavia, os termos que regulam a vendetta são os fatores que mais chamam a atenção daqueles que não estão habituados a esta cultura. Umas destas regras autoriza, ou melhor, impõe à família de alguém assassinado o dever de também matar o algoz de seu familiar.

E neste caso, o termo “familiar” se estende a hóspedes, já que o Kanun prediz que não se pode negar teto a quem bate em sua porta e pede abrigo por uma noite, e deve-se lhe dar abrigo e alimento durante a noite que este passar em sua casa. 

Além disso, durante este tempo, o hóspede é parte da família, tornando sua segurança responsabilidade do clã que o acolheu.

No caso do hóspede ser assassinado, a vendetta recai sobre a família hospedeira.

Estes preceitos de hospitalidade albanesa pode decorrer da indistinção vocabulária entre amigo e convidado, sendo esta hospitalidade um traço remanescente até os dias de hoje e uma tradição social.

Mesmo em tempos de crise econômica catastrófica, não tratar bem um hóspede, ou deixá-lo de fora de sua casa sem abrigo, é impensável.  Essa vendetta é também chamada de “dívida de sangue”.

Mas não bastava apenas vingar a morte do familiar, existiam algumas normas a serem seguidas: Após o assassinato era instituída uma trégua de 24 horas chamada bessa e ainda podia ser aberta uma trégua de trinta dias, ou seja, uma bessa de trinta dias.

O algoz deveria participar de todas as cerimonias fúnebres de sua vítima e ainda pagar um tributo de sangue ao senhor feudal. 

Por trás deste costume está implícito o princípio da honra masculina, que só pode ser retomada com o derramamento de sangue daquele que infringiu mazelas contra sua honra, ou a honra de algum familiar, sendo as mulheres eximidas desta norma. 

Para uma modernidade onde a mulher ocidental tem um papel diferente daquele da antiguidade, perceber a inferioridade estabelecida às mulheres é chocante, sendo privadas de todas as virtudes e direitos dos homens, bem como de seus deveres, o Kanun é explícito quando diz que as mulheres são sacos onde se carregar coisas

Impacto de Kanun na sociedade albanesa hoje.

De modo geral, o Kanun mesmo na sua forma inescrita era uma forma de governo para as tribos que se instalavam nas montanhas do norte albanês durante séculos.

Após a sistematização do Kanun, estas tribos o seguia de modo irrestrito, sendo mais importante que qualquer outra lei, fosse ela secular ou religiosa.

Este hábito era uma forma das tribos montanhesas preservarem suas identidades, autonomias e seu modo de vida, mesmo inseridos por séculos dentro do Império Otomano. 

A vendetta não é uma condição estabelecida somente entre as famílias, mas pode ser estender a tribos inteiras, se alongando por décadas, mesmo quando os lados opostos se esqueceram de como a peleja começou.  

Após a II Guerra Mundial este costume começou a ser cerceado na Albânia, fazendo com que a prática da retomada de sangue fosse praticada somente em algumas regiões do norte da Albânia e em Kosovo até a década de 1980.

Na década seguinte, um comitê de  intelectuais do país se empenhou em numa campanha contrária a esta tradição brutal, que resultou na pacificação de mais de 900 vendettas em curso naquele período.

Claramente, a vendetta pregada no Kanun gerava uma espiral de mortes e trazia consequências ao desenvolvimento da nação.

O regime comunista tentou, sem sucesso, interromper esta prática inclusive executando os mais velhos dos clãs para que a vendetta se extinguisse, mas um costume tão antigo parecia estar enraizado no cerne dos montanheses do norte da Albânia.

O Kanun e a Literatura

 Uma realidade como esta é um prato cheio para a literatura e “Abril Despedaçado”, a obra que chamou a minha atenção para o Kanun, mostra o impacto deste código de conduta nas famílias que estão no centro das vendettas.

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Durante o desenrolar da história podemos acompanhar o cotidiano do jovem Gjorg, o próximo a ser atingido pelo golpe fulminante dos costumes do Kanun. Ele provavelmente não chegará a seu próximo aniversário, quando comemorará 20 anos, em abril.  

Este roteiro angustiante foi adaptado para o universo nordestino brasileiro que, apesar de se valerem dos mesmos motes, são muito distintos em suas concepções finais, sendo a obra literária de superioridade indiscutível.

O peso da tradição nos ombros do jovem é palpável já nas primeiras páginas que parecem se esfriar junto ao clima seco e gélido que cerca toda a obra, como no momento onde percebemos que é exatamente um código de normas sociais que obrigatoriamente transforma um homem em um assassino.

Não somente isso. O transforma em próxima vítima, cujo aviso de ser um homem marcado para morrer está amarrado em seu braço, na forma de uma fita negra. Sua única opção para sobreviver é viver enclausurado.

Uma obra ímpar que nos oferece um panorama de como o Kanun se aplica socialmente e pessoalmente.

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