O fechar das cortinas de 2017 pegou o metal nacional de surpresa quando levou o músico Mario Linhares, vocalista e líder da banda Dark Avenger, oriunda do Distrito Federal, uma das mais importantes dentro do nosso cenário metálico desde que lançou o hoje clássico álbum de estréia, autointitulado, no já longínquo ano de 1995.
Curiosamente, esta resenha estava escrita (uma semana antes como é de praxe em nosso agendamento) e programada para ser publicada no dia seguinte ao falecimento de Mario, o que nos motivou a adiar sua publicação. Em momento algum gostaria que a publicação deste texto tivesse a possibilidade de ser encarada como oportunista, se valendo vácuo da tragédia que envolveu a banda para alavancar estatísticas. Acredito que agora, com quase um mês “de atraso”, seja uma boa hora para avaliarmos esta que será a última expressão artística que o já saudoso Mário Linhares nos deixará.
E para compreender o que se passa em “The Beloved Bones – Hell”, é interessante ter em mente o que a banda produziu após aquele marcante primeiro trabalho, seu amadurecimento, não só musical, mas também conceitual, começando em 2001, com “Tales Of Avalon: The Terror”, álbum conceitual, inspirado na saga em quatro volumes “As Brumas de Avalon”, de Marion Zimmer Bradley. Na esteira da grandiloquência deste álbum veio o reconhecimento do mundo metálico, mas em 2005 a banda entrou num hiato que se estenderia até 2009.
Confira a faixa-título… [youtube https://www.youtube.com/watch?v=YjYJf-WGv78&w=560&h=315]
Numa nova fase discográfica, iniciada em “Tales Of Avalon: The Lament” (2013), o Dark Avenger dava continuidade à saga iniciada no álbum irmão de 2001, e retomava seu lugar no cenário nacional, sempre capitaneada pelo competentíssimo vocalista Mario Linhares, mentor intelectual que se destacava além das linhas vocais, sempre com a sabedoria de deixar o tempo maturar cada obra até atingir o resultado que tinha em mente.
Mesmo assim, nada é tão intrincado e grandiloquente nesta discografia irrepreensível quanto este seu quarto full lenght, “The Beloved Bones: Hell” que vinha reafirmar esta retomada da carreira com ousadia, excelência, ambição e plena consciência da forma que queria para sua música.
A começar pela arte gráfica do álbum, apresentada em dimensões diferentes da usuais, já mexendo com a zona de conforto do ouvinte e instigando-o a saber quais as surpresas que a banda embalou neste belíssimo e esmerado digipack.
Seguindo suas próprias tradições, o Dark Avenger nos oferece um álbum girando em torno de um conceito intrincado, mas muito bem explicado em textos do encarte e nos versos das composições (que inteligentemente vêm com a tradução).
Confira a faixa “Smile Back To Me”… [spotify id=”spotify:track:4RG5ZOWm6IRTwwhTHayqFH” width=”400″ height=”420″ /]
Desenvolvido brilhantemente por Mario Linhares, o conceito traz um “interlocutor que conversa consigo mesmo em uma jornada para dentro do EU, em um embate entre o emocional e racional, passando por onze estágios mentais de quem atravessa um período de insatisfação e infelicidade”.
Por aí já temos uma ideia da profundidade artística que “The Beloved Bones: Hell” guarda na acessibilidade metálica de suas harmonias, melodias, e ritmos que constroem arranjos inteligentes, adornados com mais elementos sinfônicos e linhas de teclados, além de serem recheados de ganchos saborosos nas linhas de guitarra, numa exibição criativa poucas vezes pareada em terras brasileiras, colocando-o um degrau acima em termos de maturidade e evolução musical em comparação aos trabalhos anteriores.
Uma forma renovada e intelectual da estética metálica que personifica o Dark Avenger, cheia de detalhes, que dialoga com toda a discografia da banda, à começar pela marcante e dramática faixa-título que abre o trabalho, com detalhes que impressionam pelo requinte (existem efeitos climáticos de primeira grandeza nesta composição), mas sem perdem a vibração do heavy metal, muito pelas performances de Mario, com versatilidade vocal, e das guitarras de Glauber Oliveira (que também assina a produção do álbum) e Hugo Santiago.
Confira a faixa “This Loathsome Carcass”… [spotify id=”spotify:track:5unLFxQwmfKwJzT4uhA6F0″ width=”400″ height=”420″ /]
Num álbum de conceito tão bem amarrado e de todo tão bonito e diferenciado, é até um pecado destacar alguma composição isoladamente, afinal, uma obra de arte tem que ser absorvida em sua plenitude. Mas é impossível não se empolgar com o metal reverente e agressivo de “Smile Back To Me”, a cadência hipnótica de “This Loathsome Carcass”, ou com a beleza introspectiva de “Sola Mors Liberate”.
Abusando do direito de exagerar, posso dizer que “The Beloved Bones: Hell” é exótico, moderno e inspirado, extrapolando os limites do heavy metal rumo à erudição, criando um lugar musical de paixão e fascínio pelo alto nível técnico, pelo luxo dos arranjos e pela sensibilidade em captar musicalmente a intensidade de um guerra argumentativa entre a razão e a emoção.
E por mais que as texturas metálicas sejam as principais guias do trabalho, existe muita emoção neste horizonte melódico amplo, de harmonias sofisticadas, que também possui algo de cinematográfico.
Confira a faixa “Sola Mors Liberate”… [spotify id=”spotify:track:4uwRLj4CF5k5DDYQaWqmoa” width=”400″ height=”420″ /]
A começar pela arte da capa, que ficou a nas mãos do artista gráfico francês Bernard Bitler, e representa os sentimentos e emanações mentais presentes no álbum, passando pela paisagem sonora que extrapola o sentido da audição, “The Beloved Bones: Hell” é o ápice discográfico de uma banda inventiva e sem muitos limites, mas fiel a seus tradicionalismos.
Se Aaron Copland estava realmente certo em seu livro “Como Ouvir e Entender Música” e realmente “a marca de um verdadeiro amante da música é o desejo irresistível de se familiarizar com todas as manifestações da arte, antigas e modernas”, então este “The Beloved Bones: Hell” é a cabal demonstração de amor de Mario Linhares para com a arte musical.
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