Poucos se fala sobre o fato, mas historicamente é indiscutível a tradição do Rock Progressivo brasileiro na cidade do Rio de Janeiro. De imediato e sem muito esforço podemos citar nomes importantes como Módulo 1000, O Terço, A Barca do Sol, Bacamarte e Vímana, como genuínos representantes da cena progressiva carioca.
Eis que o projeto Caravela Escarlate vem engrossar esse caldo progressivo, misturando a abordagem setentista e clássica do gênero com toques precisos de música brasileira, e uma veia experimental latente.
Encabeçado pelo multi-instrumentista David Paiva, o Caravela Escarlate aportou no Rio de Janeiro no início dos anos 1990, mas sofreu com hiatos periódicos e mudanças de formação até 2011, quando o tecladista Ronaldo Rodrigues (ex-Massahara, ex-Módulo 1000, atual Arcpelago e O Terço lado B) se juntou à banda. Ainda como um duo, lançaram, em 2016, o EP “Rascunho” numa abordagem folk progressiva saborosa, musicalmente rica e de profundidade experimental mística, num estudo de texturas, sentimentos e timbragens.
Com a chegada do experiente baterista Elcio Cáfaro, que tem no seu currículo apresentações com Cássia Eller, Chico Buarque, MPB-4, Edu Lobo, Flávio Venturini, dentre outros, a formação foi estabilizada e lançam o primeiro full lenght auto-intitulado, cuja capa remete a uma reformulação mais sombria e noturna das artes apresentadas em estampas de álbuns do Yes e do Caravan, o que já gera uma alta expectativa quanto as oito composições que compõem este trabalho.
E o trio foi preciso ao cruzar a eloquência progressiva apresentada anteriormente numa roupagem eletro-acústica com a energia e vibração do Rock, equilibrando tudo com a organicidade advinda do registro ao vivo em estúdio, e com a inteligência musical que se diverte e reverte em criatividade quando três músicos deste gabarito se encontram para produzir música.
Confira a faixa “Planeta-Estrela”… [youtube https://www.youtube.com/watch?v=aE3JvRROnXE&w=560&h=315]
A responsabilidade de abrir o trabalho foi dada à composição “Um brilho frágil no infinito” e seu vertiginoso, sideral e classudo progressivo, com destaque ao trabalho de Ronaldo nos teclados que consegue transitar do segundo para o primeiro plano com inteligência e criatividade. Aliás, seu trabalho por todo o registro é impressionante, com bom gosto de encher os ouvidos e fazer a mente viajar num caleidoscópio lisérgico.
Já nesta abertura podemos ter a exata dimensão da sonoridade que a banda quer praticar ao longo do álbum: um prog/rock à brasileira, reencarnando e arejando o que de melhor existiu em nosso rock nacional pré-BRock, com aquele tempero psicodélico-bucólico, altamente técnico nas mudanças de andamentos e passagens elaboradas, mas também com senso melódico aflorado e grandioso.
Destaque a faixas como “Caravela Escarlate”, “Gigantes da destruição”, “Futuro passado”, e “Cosmos” (essa com um sabor irresistível de jam session), onde é possível perceber uma personalidade própria construída por texturas e sentimentos que conduzem um conceito musical único.
No caso do Caravela Escarlate, o sabor sinfônico mais ameno de outrora está acentuado, grandiloquente e bem harmonizado com texturas psicodélicas e toques de MPB. Ou seja, existem remissões que vão do já citado Yes, EL&P e Premiata Forneria Marconi (como em “Futuro Passado”), ao bucolismo mineiro do Clube da Esquina, passando pelo típico prog pop/rock brasileiro praticado por 14 Bis, Flávio Venturini, O Terço e Azymuth (como em “Toque as constelações”, que seria um fácil sucesso nos anos 1970).
Confira a faixa “Toque as constelações”… [spotify id=”spotify:track:6dNoCUaSbo0o8OndPVSIKl” width=”400″ height=”420″ /]
Sem esquecer dos fortes esbarrões com o fusion (“Atmosfera” traz um jazz/fusion tão ácido e cadenciado, quanto ameno e viajante) e a excelência para criar climas e atmosferas (“Cosmos”, por exemplo, vem na melhor escola climática do Vangelis), onde a audição instiga os outros quatro sentidos, com sabores, aromas, paisagens e formas que vão dos aspectos scifi ao frescor orvalhado primaveril numa simples mudança de passagem.
Claro que todas estas referências estão aqui apenas para situar o leitor, pois não existem mimetismos gratuitos, e sim muita personalidade que cria uma alma musical requintada e inquieta, bem alicerçada por uma seção rítmica de elegância arrojada e adornada por teclados sinfônicos de primeira linha.
Voltando ao instrumental, o trabalho de baixo também é digno de nota, com intensidade e virtuose (ouça “Gigantes da destruição”), assim como Elcio Cáfaro consegue ser técnico e sofisticado, sem ser exagerado, dando, com eloquência jazzística, o alicerce que cada composição pede. Além disso, alguns momentos pontuais me remeteram à cena argentina setentista, principalmente nos momentos mais intensos e fervilhantes, bem como alguns climas de teclados lembram o que o prog/stoner sul-americano tem produzido atualmente.
Confira a faixa “Gigantes da destruição”… [spotify id=”spotify:track:0KP5zfjoIEojYaLIi5EsTx” width=”400″ height=”420″ /]
“Caravela Escarlate” é um álbum de Rock Progressivo clássico (“Planeta-Estrela” que o diga!), classudo e longe dos modernismos estéreis, sendo cativante pela complexidade tecida no enlace de simplicidades (algumas bem acessíveis) polifônicas. Tudo isso, sem cheiro de mofo (retirado por uma produção que deixou tudo com a sinceridade de um ao vivo em estúdio) em sua organicidade de poesia lisérgica e dramaticidade astral.
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