Digam o que quiserem, balizados por opiniões políticas ou musicais, mas Chico Buarque é um símbolo da cultura musical de nosso país, e se você não consegue reconhecer a genialidade de canções como “O Que Será (À Flor da Terra)”, “Mulheres de Atenas”, ou “Roda Viva”, já beira a má vontade.
Não que “Caravanas”, novo e trigésimo oitavo álbum da carreira de Chico Buarque, que chega após seis anos de seu último trabalho, seja colocado entre seus clássicos, mas é um alívio musical nestes tempos tão acéfalos.
O jogo artístico mais maduro que exala destas nove canções pode não parear com a mesma genialidade de outrora, mas, assim como toda obra de arte, se mostra simples num primeiro contato, tomando contornos mais intrincados e ligações elaboradas à medida em que é absorvido em cada detalhe.
Confira o clipe de “Tua Cantiga”… [youtube https://www.youtube.com/watch?v=dk8arhNQta0&w=560&h=315]
Ou seja, “Caravanas” é um bálsamo musical que necessita de várias doses para fazer efeito, nos dizendo coisas diferentes a cada audição, enquanto dialoga com nosso estado de espírito, algo que os ouvidos imediatistas dos dias atuais estão pouco dispostos a experimentar.
Entendo que alguns esperassem uma vibração político-social mais escancarada desta vez. Mas nunca foi assim, não seria diferente agora. Ainda mais pelos tempos inflamados em que vivemos. A crítica poética da sociedade moderna sempre veio em camadas, e novamente está aqui deste modo, seja musicalmente ou nos versos.
É preciso saber ler os ritmos populares (em “As Caravanas” tem um “batidão” pincelado) mesclado ao requintes de jazz (que ainda tem um toque pontual de música cubana) e da MPB, ou até mesmo interpretar as letras (de “As Caravanas”, por exemplo, que traz um conteúdo riquíssimo de referências e alegorias, ou na insinuação de “Blues Pra Bia”), numa sutileza que só aumenta o brilhantismo destas composições.
“Caravanas”, novo e trigésimo oitavo álbum da carreira de Chico Buarque, chega após seis anos de seu último trabalho trazendo um conteúdo riquíssimo de referências e alegorias…
Chico Buarque, como era de se esperar, nos deu boa música, simples assim! Existe, aos meus ouvidos, um momento menor dentro do repertório, em “Massarandupió”, mas no geral o alto nível impera, principalmente quando o compositor olha para dentro de sua própria obra (que nos dias atuais dificilmente é interpretada pelo exclusivo prisma da arte), modernizando suas musas, seus questionamentos, e até mesmo suas crônicas.
Os arranjos instigantes vêm no primeiro plano por tonalidades classudas da música brasileira, com molduras eruditas, e espírito jazzístico, seja ele latino, como em “Casualmente” (na melhor escola Buena Vista Social Club), ou tradicional, como em “Blues pra Bia”, uma faixa construída sobre um arranjo Blues/MPB, com direito a guitarra pontual, e detalhes burlescos com tons de big band, além de pianos, sax e trombone, numa das composições mais interessantes do trabalho.
Neste sentido, discordo dos que acusam pejorativamente Chico de reciclar seu próprio trabalho. Numa carreira tão longeva e com tamanha identidade é impossível não revisitar algumas idéias, e o compositor fez questão de oxigenar e modernizar algumas delas, como em “Desaforos”, ou na brilhante “Dueto”, ao lado de Clara Buarque, além de brindar aqueles que prestam atenção aos detalhes com preciosos tesouros camuflados
Confira o clipe de “As Caravanas”… [youtube https://www.youtube.com/watch?v=6TtjniGQqAc&w=560&h=315]
Assim como fizera em “Tua Cantiga” – que traz a poesia cotidiana de Chico Buarque, transformando uma relação extra-conjugal em uma arte lírica ousada, carregando muito de sua bagagem musical em verso e música, pela geometria do lundu – ou em “A Moça do Sonho” (outro dos destaques máximos, carregando uma poesia musical em violão dialogando melancolicamente com violoncelo, remetendo a preciosidades oníricas como “Suburbano Coração”, “As Vitrines”, ou “Valsa Brasileira”) e “Jogo de Bola” (uma crônica social figurada pelo futebol com sabor requintado e saudosista do samba, deliciosa em seus arranjos classudos e cheios de movimento).
Claro que o álbum não possui a força controversa de outros momentos da carreira de Chico Buarque, ou seu clamor explícito, mas sua música tocante ainda esta aqui, com voz amadurecida que transmuta uma versão senhoril de sua essência artística.
Sendo muito sincero àqueles que dizem que a obra de Chico Buarque morreu no álbum de 1989, que tem a belíssima “Valsa Brasileira”, ou até mesmo antes, composições como “As Caravanas”, ou “Sinhá” (do álbum anterior), seriam consideradas clássicas se lançadas em qualquer disco dos anos 1970. Atualize-se!
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