“Lúcifer”: Uma Análise da Obra-Prima de Mike Carey

 
 

Lúcifer, a Estrela da Manhã, renunciou ao seu trono no Inferno. Se demitiu do papel de antagonista de Deus, pediu a Morpheus, Senhor dos Sonhos, para cortar suas asas, a sua última herança de quando ainda era anjo, para ser dono do bar Lux, onde apenas toca “cocktail piano” e assiste o mundo se deteriorar com o tempo. Com este simples enredo, Mike Carey desenvolveu um dos mais interessantes personagens das histórias em quadrinhos.

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“Lúcifer: O Diabo à Porta”, de Mike Carey (Panini, 2012)

Neil Gaiman marcou época com a saga Sandman, um verdadeiro relicário de personagens únicos e muito bem elaborados e, principalmente, sem precedentes similares na histórias das HQ’s.

Para citar apenas dois, que mais tarde teriam suas próprias publicações, temos o onipresente John Constantine e o tema do nosso texto de hoje, Lúcifer, a Estrela da Manhã.

Sobre o personagem Lúcifer, o próprio Gaiman diria que “das centenas de personagens de Sandman, ele, acima de todos, tinha seu propósito definido desde o instante em que subiu ao palco”.

Sua estréia se deu no arco Estação das Brumas, onde sua retórica se mostra recheada de filosofias e reflexões sobre seu papel na Criação.

Ao se questionar o quanto de sua história foi livre arbítrio e o quanto foi planejado pela inteligência superior, ele desenvolve uma justificativa de sua desistência do Inferno, que se encontra vazio no momento em que Morpheus ali chega.

Lúcifer está claramente entediado com sua posição de antagonista, fecha o Inferno, se despe de sua fiel Mazikeen, pede a Morpheus que corte suas asas angelicais e entrega-lhe a chave do Inferno, que agora é um reino sem rei.

Sua visão de seu papel defronte a humanidade explica muito de sua decisão: “Eles usam meu nome como se eu passasse o dia inteiro empoleirado em seus ombros forçando-os a cometerem atos que em outra situação julgariam repulsivos… Eles falam de mim como seu eu andasse comprando almas na feira… Não preciso de almas…Eles pertencem a si mesmo, mas odeiam por ter que enfrentar isso!

Esta crise existencial de Lúcifer se encerra ali, passando pelo palco de Sandman apenas como um coadjuvante. Entretanto, Neil Gaiman via o potencial do personagem e sempre que alguém perguntava-lhe se havia algum personagem para o selo Vertigo, respondia: Lúcifer! Mas enfrentou algumas negativas até a chegada de Mike Carey.

Uma das páginas de Estação das Brumas onde Lúcifer desfila algumas de suas justificativas para renunciar ao posto de Rei do Inferno

Mike Carey pertence à segunda geração britânica que invadiu o mercado dos quadrinhos americanos. Nascido em Liverpool, em 1959, ele trabalhou como professor durante quinze anos, antes de começar a se dedicar à nona arte.

Seus trabalhos podem ser vistos em biografias gráficas de músicos como Ozzy Osbourne e Pantera, bem como em títulos da Marvel e DC Comics, passando pela revista britânica 2000AD.

Dentro da Marvel e da DC Comics emprestou seu talento a títulos como X-Men, Quarteto Fantástico, a sensacional série O Inescrito (cotada como sucessora direta de Sandman, devido a seu alto grau de complexidade e profundidade de seu enredo), Lugar Nenhum (baseada na obra de Neil Gaiman), além seus dois maiores êxitos: Hellblazer (John Constantine) e Lúcifer.

Ao contrário do que se imagina, Lúcifer, como descrito em Sandman, não era um personagem fácil de se desenvolver. Segundo Carey, “existe um enorme problema quando Lúcifer se torna o protagonista, pois ele não pode ser um herói ativo, é inconcebível colocá-lo em uma briga. Ele funciona mais como uma catalisador”.

Mesmo com esta análise, Lúcifer foi muito bem remodelado nas cores de Mike Carey, que imprimiu-lhe uma arrogância perspicaz, um humor sarcástico e uma forma fria de encarar as vicissitudes dos seres humanos.

Além do mais, ele detém o maior poder que alguém na Terra poderia desejar: o conhecimento acumulado de quem viveu diversos éons como antagonista de Deus.

Sua posição se torna de certa forma vantajosa, pois o Céu não confia nele e o Inferno o odeia, mas ele pode vir a ser útil nos serviços sujos, afinal, ele não pertence a nenhum dos dois lados, mas os conhece bem. As histórias de Lúcifer foram publicadas de 2000 a 2006.

 Lúcifer, no arco “Seis Cartas Sobre a Mesa“, uma de suas primeiras histórias nas cores de Mike Carey, ao lado de sua fiel escudeira Mazikeen.

A trama desenvolvida por Carey aparentemente se inicia no ponto onde o personagem parou em Sandman, com a diferença de ele estar acompanhado da fiel Mazikeen.

Na despedida do Inferno, nas páginas de Sandman, Lúcifer diz a Mazikeen que ela não poderia acompanhá-lo, mas ao que tudo indica ela não obedeceu seu senhor, e aqueles que não entendem o motivo dela usar sempre um capuz e uma máscara que somente esconde metade do rosto, nas páginas de Sandman temos a sua real e impactante imagem, que causaria alvoroço na Terra, ao lado de Lúcifer.

As motivações do ex-Senhor do Inferno permanecem as mesmas, sendo a principal delas escapar do determinismo em escala angelical dos planos de Deus, em busca do livre-arbítrio. Nesta busca, ele vai oscilar entre o heroísmo e a vilania, enquanto faz das pessoas importantes apenas quando lhe são úteis.

Esta lição é aprendida já no seu primeiro arco, Alternativa Estrela da Manhã, onde faz da jovem Rachel uma mola propulsora para atingir seus objetivos.

Lembremos que ele agora não possui muitos de seus poderes antigos, sendo que dependerá de algumas pessoas para atingir certos objetivos, assim como fez a seu antigo conhecido Meleos.

Apesar disso tudo, ele ainda possui um parco código de honra, formado por apenas um item: sua palavra é inquebrantável.

Claro que fiz apenas um pequeno panorama do personagem, que precisaria mais tempo e espaço para ser totalmente dissecado, e sua importância dentro da nona arte moderna ser totalmente compreendido.

Resumidamente, podemos dizer que a forma com que aborda filosofia, conduta moral e interpretação da realidade faz desta obra um clássico atemporal das histórias em quadrinhos. Um status tão reconhecido que virou série de televisão em 2016.

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Lúcifer, a série, estreou em 2016, aproveitando parte da mitologia criada por Mike Carey, mas investindo em algo menos denso, mais voltado ao humor sarcástico do personagem do que em suas implicações filosóficas.

No roteiro o personagem se caracteriza como um “bon vivant”, que detem o conhecimento de um imortal, querendo explorar os prazeres mundanos, como um dândi moderno, mas cheio de questões “pessoais” de cunho psicológicos inacabadas, além do clichê sobre as emoções humanas.

Isso perde um pouco da essência do texto original, mas se encaixa nas expectativas pouco reflexivas da audiência moderna. Ah! E na versão da série Mazikeen será bem diferente.

Ou seja, a produção para a Tv e a clássica HQ possuem poucos laços em comum, a primeira funcionando bem como entretenimento, e a segunda com mais camadas e subjetividades.

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