“O Mecanismo” Ficção com um fundo de verdade, ou documentário disfarçado de ficção?

 


“Terminei o segundo Tropa de Elite em Brasília, insinuando que havia uma conexão entre a violência nas ruas e a corrupção na política. A Lava-Jato confirmou isso!” José Padilha.

 

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“O Mecanismo” (2018, Netflix; Direção: José Padilha)

Como bem dito em algum momento da série “O Mecanismo”, recém-lançada pela Netflix, “o Brasil não é para amadores”! 

Mal estreou no serviço de streaming  e o histrionismo “de motivações suspeitas” tomou conta de quem ainda não entendeu que, nos dias de hoje ainda mais, propaganda contrária, opositória e iracunda é a melhor das propagandas.

As notícias de um cancelamento em massa de assinaturas da Netflix não param de chegar, mas a verdade é que duvido que muitos destes, se de fato existirem, consigam manter essa posição por mais de uma semana. Afinal, estes já perderam os hábitos da década passada para conseguir assistir suas séries favoritas.

Outrossim, este auê todo só vai motivar novos espectadores a dedicarem seu tempo assistindo a série, nem que seja para poder participar das conversas entre amigos. Afinal, propaganda contra é a melhor das propagandas, lembra? Ela certamente, no caso do entretenimento, leva ao consumo!

E quando estes mesmos incomodados relembrarem o quanto dá trabalho o modo antigo (e ilícito) de consumo de filmes e séries, acredito que voltem e a Netflix conseguiu o frisson que queria, impulsionando, potencialmente, a série em outros países.

Ou você acha que chamaram o internacionalmente renomado  José Padilha (“Narcos”, “Tropa de Elite” e “Robocop”) para produzir algo para “consumo interno” (como é o caso da série “3%”)? Entendam que “O Mecanismo” será lançada em 190 países.

Lembre-se que no auge do sucesso de “House of Cards”, internacionalmente circulava a anedota de que as bizarrices políticas dos Underwood (como escrevemos nesse texto dedicado a esta série) eram nada perto do que acontecia no Brasil. Existe um filão comercial a ser explorado no escândalo acontecido no nosso quintal e entendo que isso possa incomodar alguns.

E esses alguns serão responsáveis por alardear a premissa de uma série que incomodou o Brasil! Só para citar um exemplo, a segunda temporada de “Designated Survivor”, foi vendida como a série odiada por Donald Trump. E quer saber? Foi por isso que fui assistir a série. Isso instiga nossa curiosidade.

O problema é que o brasileiro tem aquele hábito perigoso de interpretar os próprios defeitos como auto-avaliação, mas se vindo de outro é ofensa! E o desenho do mecanismo, o câncer fractal que engole nosso país, é um dedo apontado para cada um de nós! E no geral, a série soma muito mais acertos do que erros, além de gerar alto potencial para a sequência.

A impressão que tenho é que “O Mecanismo” é a aposta da Netflix para mercados externos explorando uma ferida ainda aberta na política e economia brasileira, e conhecida internacionalmente. E a arte também tem essa premissa: cutucar a ferida aberta!

Assista o primeiro trailer da primeira temporada de “O Mecanismo”… 

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=80NBF4O-guM&w=560&h=315]

Mesmo que cada episódio venha aberto por um aviso de que a produção é ficcional, os nomes e as caracterizações não deixam dúvidas dos personagens reais que estiveram no centro do furacão que foi (e ainda é) a Operação Lava-Jato.

Estão ali, Sérgio Moro, Dilma Rousseff, Lula, Michel Temer, Aécio Neves, Alberto Youssef e o empresário Marcelo Odebrecht, dentre outros, com nomes trocados, mas parecidos! Ou instituições como a Polícia Federativa, Banco Brasileiro ou a Petrobrasil, e empresas como Miller&Brech e OSA, facilmente identificáveis para quem acompanhou o desenrolar do escândalo na época.

Não obstante, a trama criada por José Padilha (que dirige a série ao lado Felipe Prado e Marcos Prado) e Elena Soárez (escritora),  retratando as investigações da Operação Lava Jato, foi adaptada do livro “Lava Jato – O Juiz Sergio Moro e os Bastidores da Operação que Abalou o Brasil”, escrito pelo jornalista Vladimir Netto. Amplificando o envolvente jogo do quem é quem na vida real!

É importante registrar que a troca de nomes (que culminou numa ácida caricatura) foi exigência da própria Netflix para evitar problemas jurídicos, o que dá ainda mais apelo à reinvenção dramática da montagem do quebra-cabeças feito pela operação Lava-Jato.

O roteiro utiliza um intervalo de dez anos para mostrar como o maior esquema de corrupção do Brasil foi construído, ao mesmo tempo que insere o complexo e inconformista Marco Ruffo (Selton Mello), um delegado aposentado da Polícia Federal obcecado pelo caso que está investigando, como um anti herói cheio de demônios, que enxerga o mecanismo que é o câncer da nação.

Ao seu lado, temos a determinada Verena Cardoni (Carol Abras), também delegada da Polícia Federal, responsável pela investigação do maior caso de desvio e lavagem de dinheiro da história do Brasil. Mas ainda imbuída de fraquezas humanas.

A trama se concentra de modo dinâmico, e até um tanto apressado (tirando o tempo de raciocínio do espectador) em certos momentos, em como as investigações impactam a vida dos investigadores, dando menos espaço às nefastas costuras políticas, deixando claro que existiu muita força para parar a operação e uma relutância da presidente em exercício neste sentido (inclusive antecipando conchavos que culminaram em sua queda).

Assista o segundo trailer da primeira temporada de “O Mecanismo”…

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=MK2TAJNBYI4&w=560&h=315]

Muitas frases de efeito, principalmente daqueles ligados à operação Lava-Jato, são um problema do texto, e longe de querer entrar nos méritos políticos da trama, é fato que a narrativa ocidental pede um lado bom da força versus um lado sombrio.

Está claro qual é a história contada: uma (motivada contra as adversidades e pouco apoiada nos bastidores politico-judiciais) Operação Lava-Jato, contra o (onipotente e onipresente) mecanismo criado pelos poderosos políticos, empreiteiros e juízes no Brasil.

Um fato irrefutável que carimbou o adjetivo “parcial” na série! Mas existe imparcialidade na ficção? Desde Caim e Abel podemos dizer que não! Mas numa trama onde realidade e ficção são separados por um véu frágil e fino, se ancorar na liberdade ficcional de ser parcial é um risco calculado. Quase um panfletário “truque sujo”.

E isso é um ponto negativo, pois realmente o texto da série é bem alinhavado à posição de Padilha quanto aos eventos retratados, além do que poderia ser melhor desenvolvido, mesmo na mensagem que as imagens passam. Até porque, a forma quase de documentário que alguns movimentos possuem geram uma confusão (proposital) entre ficção e realidade.

Mesmo que eu compartilhe de várias da visões apresentadas, a demonização de uns e a elevação de outros é um artifício relativamente ultrapassado nos dias de hoje. Isso tanto é um fato que o personagem de Selton Melo parece ser, propositalmente, um mediador entre estes dois opostos, se equilibrando entre a retidão e as sombras.  O alívio dramático que equilibra o dualismo bem definido no todo.

A figura do juiz Rigo, por exemplo, mostra suas vaidades afloradas e sua primeira aparição lendo um quadrinho de super herói e a posterior alusão a virilidade, é sintomática. O juiz se mostra mais comedido que seu inspirador real, mesmo que sua figura atlética, destemida e de luta contra o sistema reforce a ideia de um paladino moderno do judiciário, todavia, deixando claro que a vaidade é o que o impulsiona.

Por aí temos a certeza de que jogo de vaidades e as cafajestagens em suas mais variadas formas, não atingem somente os corruptos, mas também quem os caça.

Vale menção à cena dos presos na carceragem da polícia federal comemorando a possibilidade da ida dos processos para o STF, como se ali fossem cartas marcadas, que chegou em hora propícia, para escancarar ao mundo como se encontra a credibilidade da mais alta corte do país.

Existe inclusive uma sugestão de que todo o castelo de corrupção foi construído pela fraqueza gerada pela vaidade do Ministério Público e do juiz Paulo Rigo, a figura inspirada em Sérgio Moro (e o evento é relacionado com a investigação do Banestado), personagem que em “O Mecanismo” tem uma posição secundária no protagonismo dos eventos.

No geral, isolado como produto de entretenimento, “O Mecanismo” traz personagens bem criados (Selton Melo se mostra convincente como um policial com distúrbio bipolar que puxa o primeiro fio do novelo criminoso, e angustiado pela crueldade do mecanismo), trama alinhavada entre ficção e “realidade”, e uma direção coesa, que dá o sentimento exato no momento propício.

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Selton Mello vive o complexo e inconformista Marco Ruffo, um delegado aposentado da Polícia Federal obcecado pelo caso que está investigando, como um anti herói cheio de demônios, que enxerga o mecanismo que é o câncer da nação.

Todavia, o uso de cenas de sexo para dar intensidade a laços corruptos (em ambos os lados da “força”), ou gerar adrenalina, me parece um artifício menor, que poderia ser utilizado com menos periodicidade, aliás, temos uma inconsistência temporal (entendo que para dar dinâmica e envolvência à narrativa) que poderia ser melhor trabalhada em mais do que oito episódios.

Apesar de me decepcionar com apenas oito episódios, isso se deu pela qualidade da série e minha vontade ver mais, e saber o que acontecerá com o futuro de Ruffo. Por serem episódios com pouco mais de quarenta minutos, fica mais fácil exercitar o costume da “maratona” que cria o envolvimento com o produto final.

O que virá depois? Torcendo por uma sequência, e tendo Roberto Ibrahim (o correspondente a Alberto Youseef, magnificamente interpretado por Enrique Diaz, em sua frieza embasada na impunidade) como o grande vilão da primeira temporada, creio que Ricardo Bretch (Marcelo Odebrecht), será o vilão da sequência que provavelmente focará em como a Lava-Jato pegará o maior nome da sua lista de corruptos.

“O Mecanismo”, pode até parecer, mas não é um documentário! É um thriller investigativo construído por fatos reais, recheado por licenças poéticas, e alta densidade psicológica, e assim deve ser interpretado, como o passo seguinte a “Tropa de Elite” na sua leitura da realidade brasileira feita por José Padilha. Nada além disso!

E acredite, Padilha foi mais imparcial do que Vladimir Netto no livro que inspirou a série, mesmo que tenha escolhido uma data providencial para lançar sua nova produção!

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