RESENHA | Umberto Eco – “Número Zero” (2015)

 

“Uma das primeiras e mais nobres funções das coisas pouco sérias é lançar uma sombra de desconfiança sobre as coisas demasiado sérias”, registrou Umberto Eco em seu último romance, “Número Zero”.

Esta frase inicial é apenas uma das emblemáticas proferidas pelo genial e multifacetado Umberto Eco.

Um homem das letras que conseguia transitar muito bem entre a veia acadêmica e a literatura de massa, e que cabe como uma luva aos seus romances que envolvem teorias da conspiração.

Professor da Universidade de Bolonha, crítico cultural de alto gabarito, um intelectual do campo da semiótica e do medievalismo e um escritor de fama mundial, Eco faleceu em fevereiro de 2016, aos 84 anos, em sua casa, ao lado da esposa e de seus impressionantes 30 000 livros.

Umberto Eco - Número Zero (2015, Editora Record)

“Número Zero”, seu último trabalho, rompe alguns de seus padrões, seja pela escrita dinâmica e jornalística, seja pela ausência de um personagem emblemático, mas reforça características que sempre tornaram suas narrativas tão envolventes: humor inteligente, versões alternativas e mais instigantes da história, e muita elegância literária.

Talvez o maior trunfo desta obra, que muitos têm considerado menor dentro da divisão romancista do escritor, seja a fluidez e ambientação quase cinematográfica, colorindo suas descrições em tons noir que seriam muito bem explorados numa película de Frederico Fellini.

Esta aclimatação é perfeita para uma boa história que envolva conspirações modernas como a de “Número Zero”, que engloba a guerra de informações e o assassinato de reputações via imprensa, além, é claro, de um grande segredo histórico que corre por detrás das cortinas do palco da história.

Segundo descrito na própria aba da primeira edição, a trama discorre sobre

“um grupo de redatores que, reunido ao acaso, prepara um jornal. Não se trata de um jornal informativo; seu objetivo é chantagear, difamar, prestar serviços duvidosos a seu editor. Um redator paranoico, vagando por uma Milão alucinada (ou alucinado numa Milão normal), reconstitui cinquenta anos de história sobre um cenário diabólico, que gira em torno do cadáver putrefato de um pseudo-Mussolini. Nas sombras, a Gladio, a loja maçônica P2, o assassinato do papa João Paulo I, o golpe de Estado de Junio Valerio Borghese, a CIA, os terroristas vermelhos manobrados pelos serviços secretos, vinte anos de atentados e cortinas de fumaça — um conjunto de fatos inexplicáveis que parecem inventados, até um documentário da BBC mostrar que são verídicos, ou que pelo menos estão sendo confessados por seus autores. Um perfeito manual do mau jornalismo que o leitor percorre sem saber se foi inventado ou simplesmente gravado ao vivo. Uma história que se passa em 1992, na qual se prefiguram tantos mistérios e tantas loucuras dos vinte anos seguintes. Uma aventura amarga e grotesca que se desenrola na Europa do fim da Segunda Guerra até os dias de hoje.”

Resumido desta forma, tudo parecer meio confuso e atropelado, mas Eco, como sempre, costura magnificamente sua trama conspiratória, uma de suas confessas obsessões.

O tema das sociedades secretas já eram presentes em “O Pêndulo de Foucault” e em “O Cemitério de Praga”, sendo esta ideia de que todos os eventos históricos são conduzidos por conluios secretos já sedimentada para seus fãs que, ao contrário de tantos outros que abordam o tema, têm plena consciência do caráter alegórico das teorias de Eco, que inclusive se definiu como “um acadêmico que escreve romances no fim de semana”.

Mas existe uma formatação bem diferente da bibliografia do autor nesta sua última obra quando ele leva suas conspirações para dentro de alguns poucos lugares e simplesmente plantando a semente das ideias, ao invés de desnudá-las rigorosamente.

Além disso, nunca é demais lembra a importância da ano em que se passa a narrativa e seu paralelo com o que vivemos no Brasil neste últimos anos.

Em 1992, estava em curso a operação Mãos Limpas na Itália (o equivalente à nossa operação Lava-Jato), sendo que Eco inseriu nesta época pré-internet um jornal especializado em atacar inimigos (qualquer semelhança com os sites que pipocam aos montes na internet brasileira não é mera coincidência).

Exemplificando assim o que de mais vil pode existir no jornalismo: a (des)informação servil a interesse políticos e econômicos ao lado da manipulação de massas por meio da manipulação dos fatos.

Em meio a críticas explícitas ao modus operandi da imprensa moderna, a recriação da história italiana pós-II Guerra Mundial é feita como um quebra-cabeça desvelado aos moldes de Arthur Conan Doyle, embalado numa escrita muito pareada com a de Jorge Luis Borges, escritor que também gostava de contar suas versões paralelas da história.

Este livro reflete, acima de tudo, a inventividade de um escritor em sua melhor forma, cerceada pela urgência de quem via seus últimos dias se aproximando e ainda tinha muito a oferecer.

O ritmo da narrativa é inconstante, acelerando em alguns momentos, o que deixa certas elucidações muito vagas, principalmente no desfecho que atinge o leitor tão rápido que foi preciso de um “replay” para entender o que se passou.

Todavia, o humor sagaz que acompanha o olhar de um autor  com uma grande bagagem de experiências vividas é, sem dúvidas, o tempero que torna este prato mais frugal do cardápio “umbertoeconiano” saborosíssimo.

Além disso, a crítica irônica à nossa sociedade moderna é tão inteligente que traz dicotômicos sentimentos aos nossos corações.

Um belo exemplo é a análise noventista sobre o recém-nascido telefone celular:

“A história dos celulares não pode durar. Primeiro, custam uma nota, e são poucos os que podem se dar a esse luxo. Segundo, as pessoas daqui a pouco vão descobrir que não é indispensável ficar telefonando para todo mundo a toda hora, vão sentir falta da conversa pessoal, cara a cara, e no fim do mês vão perceber que a conta de telefone atingiu picos insustentáveis. É uma moda destinada a desaparecer no espaço de um ano, no máximo dois. Por enquanto, o celular só útil para os adúlteros… e talvez para encanadores… Para ninguém mais.”

Existem tantas verdades que criticam nosso comportamento moderno neste excerto do texto que chega a ser constrangedor.

Assim como soa constrangedora nossa assimilação do quanto podemos ser manipulados na guerra de informação que temos hoje, tão bem alegorizada nesta última obra de Umberto Eco, um especialista na literatura de diversão em alta qualidade.

“No seu gênero é um deus.

O gênero que é uma merda!” 

Umberto Eco, em “Número Zero”.

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