RESENHA | Ferréz – “Deus Foi Almoçar” (2012)

 

“Deus foi Almoçar” é um livro que dá uma nova dimensão para a literatura marginal de Ferréz, algo refletido nas palavras de Calixto, o personagem principal: “Parece que sou só um telespectador da minha própria vida”

Calixto é um homem simples, preso ao cotidiano, com mulher e filha. Uma vida normal que, de repente, não faz mais sentido para ele.

Logo vem a crise do casal Calixto e Carol, a separação após o nascimento da filha, que é o centro do romance junto as observações que ele faz do cotiano, de si mesmo, suas relações e das pessoas à sua volta.

Ferréz - Deus Foi Almoçar

Se você já está familiarizado com a literatura socialmente engajada à periferia das grandes cidades orquestrada por Ferréz e o enquadra em um estereótipo de arauto dos menos favorecidos, esqueça!

O próprio autor, ao “vender” seu livro como um anúncio fantasiado de capitalista na contracapa, nos adverte desta mudança de ambientação na sua obra.

Ao nos dizer que “não vendo para colecionadores que não entendem que o tempo pode causar danos a este material”, fica implícito o caráter independente da linearidade temporal contido nas páginas, levando a nós, prisioneiros irrecuperáveis do fluxo temporal, a dançar entre deduções do “quando” onde se passa a obra.

Passado?

Presente?

Futuro?

Pouco importa, ingredientes dos três tempos se entrelaçam, como se acontecendo ao mesmo tempo, sendo apenas a nossa absorção da narrativa restrita ao passar contínuo do passado ao futuro.

Este desprezo temporal é supervalorizado na rapidez dos capítulos e a cadência musical de suas frases que compõem pequenos parágrafos, dando uma fluidez perigosa para o entendimento real do texto.

A transição entre alguns capítulos nos remete a cortes muito comuns aos nossos sonhos.

Em verdade, Ferréz desenvolve a história de Calixto por excertos de sua vida, sem se preocupar com a linearidade e sim com o turbilhão de emoções que cercam o personagem de meia idade, que perdeu a esposa e a filha para os erros rotineiros, que divaga em aventuras sexuais frustradas e cujo círculo de contatos pessoais se resume a troca de olhares com uma vizinha, lembranças de Melinda, telefonemas esparsos com seu único amigo Lourival e formalidades com Hamilton, seu parceiro de trabalho em um arquivo morto de uma empresa.

O mais interessante é a forma quase metafísica, como o desenrolar de um sonho, que Ferréz consegue criar ao nos apresentar estes fragmentos da vida solitária e reclusa de Calixto, como se este espaço-tempo se situasse num período onde Deus resolveu sair para almoçar e tudo saiu do controle, inclusive ambientes, linearidade temporal, solidariedade e as nuances da vida particular de cada indivíduo.

Como se preso a um caleidoscópio de sua história, é apresentado Calixto como um homem abandonado pelos seus próximos e que nem pode dizer que Deus está ao seu lado.

Usufruindo apenas da companhia de uma televisão ele vê seus dias passarem da padaria à casa empoeirada, tendo visões de sua pequena filha correndo pela casa vazia, enquanto mantém uma colher no bolso, cujo singelo significado nos é apresentado nos últimos parágrafos do livro, onde, segundo o próprio autor registra na contracapa, faltam alguns pensamentos e um pequeno sentimento no último capítulo.

Definitivamente, nem tudo está explicito e tão pouco a leitura deste, relativamente pequeno, volume concebido por Ferréz ao longo de oito anos é de leitura fácil.

As vicissitudes de Calixto são carregadas de nuances densas, terrivelmente comuns dando forma a uma odisseia psicológica de solidão e abandono, que é capaz de nos impactar de modo acachapante, imprimindo no leitor todas as amargas sensações tão latentes no personagem principal e nos faz questionar, frente às mudanças drásticas da vida, se Deus, realmente, não foi almoçar.

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